quarta-feira, 20 de janeiro de 2010




Tributo a um coquista

* Por Marco Albertim

Os anos vergaram suas costas e o diminuíram de tamanho. Nunca tirava o chapéu de feltro, cujo marrom desbotara, perdera o brilho. Os olhos, cobertos pela crosta viscosa da catarata, davam conta de uma vermelhidão própria de alcoólatras. Inda que sob a coberta de lona, onde comerciava inhames e batatas, Sebastião Grosso não tirava o chapéu.

As paredes da frente, das laterais, são de madeira, grades de madeira separando-o dos vizinhos também comerciantes de inhames. Nos fundos, a parede de um muro onde ele recostava as costas. Sequer um fio de sol o atingia no estrado de madeira. Se tirasse o chapéu, ver-se-ía uma cabeça miúda, com ralos fios de cabelos. O contraste assomava na voz cava, soprada da boca cujo bigode sumira.

Deixou-se talhar, Sebastião Grosso, por setenta anos em rodas de coco ou coco de rodas. Negro cabinda, por certo de nação banta, deixou-se alugar com doze anos de vida, na semeadura e corte da cana. O pai, João Grosso, permitira a exploração do filho para prover o sustento da família. Ele também, João, um alugado da Usina Maravilha, em Goiana. A paga da usina não era tanta. Pai e filho juntavam-se, aos sábados, para a venda de milho, feijão, arroz e farinha; comprados para a revenda.

A marcação dos pés, no compasso de três pisadas fortes no chão, aprendeu-a ouvindo o ganzá, vendo homens e mulheres umbigando num sítio do Barro Vermelho. O pai, João Lopes da Silva, morreu quando o filho tinha quinze anos. Curumi quase crescido, rachadura nos pés, cabelo riçado, ficou aos cuidados da mãe. Depois veio a morte de Mané Bonitinho, parceiro de João no coco-de-ganzá. O coco se mudou da Ilha da Roça para a rua do Arame. Sebastião Grosso juntou-se com o ticuqueiro José Belísio para reorganizar a roda. Casou-se aos 25 anos, ele, com Maria Rita, coquista e yalorixá. Não era sambadora porque não soubera tirar versos, só ele, herdeiro da folgança. A mulher se esgoelava uma noite na semana, no culto aos orixás. Na sala enfeitada, mulheres gritando, negros batucando. Sebastião, nem contra nem a favor, dormindo, assobiando sob o bigode àquela altura farto. "Sou filha de yemanjá", ela confessara . As filhas de culto renderam-se com saravás sonoros. Ele não deu tratos, recolheu-se submisso, respeitoso.

Maria Rita deu à luz um único filho. Quebrou o resguardo puxando água da cacimba para o uso da casa. O velho Fulô, curandeiro, curou-a; disse que não mais emprenharia. Ela conformou-se feito uma iorubana, gemendo com o marido na cama e nas oferendas a Yemanjá.

Para abrir o coco de roda, ele carecia de sua mulher; com a voz de barítono, Sebastião puxando os versos. Maria Rita repetindo o samba no segundo refrão. Mais quatro mulheres para ecoar o refrão; e ainda três homens, dois com um bombo e o outro com o ganzá. Uma vez Sebastião Grosso ficou rouco, Maria Rita substituiu-o; atropelou-se nos versos e se recompôs do meio para fim. Improvisou uma gemedeira de ais, de uis ao fim da sextilha.

O terreiro de xangô é o mais antigo de Goiana, com 40 anos. Sebastião Grosso, dormindo nas festas dos orixás. Maria Rita, de bem com os santos, queria-o dormindo mesmo, para não interromper a incorporação das divindades.

No coco, no meio da roda, ele improvisava ou repetia de outras sambadas. Os versos, todos de inspiração telúrica, tristes como a rotina do povo ioruba escravizado:

Do mês de maio pro mês de junho
Assubiu um balão naquele oiteiro
O povo chorava e se maldizia
No mar não ficou nenhum peixeiro

A casa é de alvenaria, própria, construída há dezoito anos. Mas ele soube que os negros, quando amassavam barro, batiam com os pés para construir casas em mutirão. Outros quebravam cocos secos para tirar o óleo. O ritmo nasceu daí. A umbigada, na roda, não nasceu de propósitos devassos; era uma mesura, aceno para a nova vida crescendo no ventre das mulheres. Nos cantos, uma estrofe e um refrão; o refrão, fixo, é respondido pelo coro. Sebastião Grosso fora coquista, coqueiro criativo quando assumiu o lugar do pai; por muitos anos improvisou os versos. Com a velhice, repetiu-os. Não sofreu censura por causa disso. A vizinhança da rua da Campina, no Curtume, para onde se mudara por último, perdoou-o porque o verso cantado no mês de junho era o mesmo de junho do ano anterior. As rodas, espreitando o fim próximo do coquista, tornaram-se anuais. "Por causa da zoada dos moleques!" Estava no fim, ele, inda que não quisesse se entregar. Não sapateava mais, nos três passos para um lado, três para o outro; batia palmas no ritmo, seguindo o meneio de corpo das mulheres, mexendo os ombros, sem malícia, sem censura.

Sebastião Lopes da Silva. Grosso, praieiro de Goiana, por certo herdara o coco praiano. Fez rodas em Tracunhaém, Pontas de Pedra, Carne de Vaca. Morreu diabético, sem pedir à yalorixá Maria Rita, que rogasse aos santos por mais um mês de junho celebrando as umbigadas.

* Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.


Um comentário:

  1. Sebastião seguiu sua sina e cumpriu
    sua missão. Se Deus tivesse lhe dado mais
    tempo viveria-o para o coco.
    Abraços

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