segunda-feira, 25 de janeiro de 2010




Te reencontro nas águas de amar

* Por Eduardo Murta

Tinham dado a ele nome de anjo. Um doce Gabriel, cuja aura de mistério remetia a finas lendas. A mais intrigante, a de que, no fundo, ele não existia. Mas quem seria, então, o homem religiosamente postado às margens do Rio das Velhas, empunhando um livro às mãos? Ao sol ou à chuva. Invariável. Se metia em ares de intelectual e, estampa de galã, logo uma gata se aproximaria.Qualquer fosse a abordagem – tola em geral –, era só concordância, a que não dilapidasse expectativas. Devolvia as gentilezas com aquelas miradas beirando a hipnose, verde-turmalina, e um sorriso que desarmava todo o restante. Num minuto já estavam segredando preferências no cinema, roteiros gastronômicos, se praia ou montanha, Beatles ou Rolling Stones... Esperava que ela respondesse e replicava com afinidades em malícia de seda.

Foi assim variando de Juliana a Maria, de Graça a Mirela, de Silvana a Iolanda. Alternava não por índole de caçador, mas porque, jamais explicaria a elas, a natureza exigia que fosse dessa forma. Ainda que enxergasse um quê de charme naquela história. A de, desejado, sempre fugir. E, fugindo, se eternizar como lembrança. Ardor leve na alma. Fato é que as mulheres nunca o viam por uma segunda vez.

E sua ausência se tornou uma referência maior que ele próprio. A ponto de se formar, na velha Sabará, um clube das “Viúvas de Amor”. Gabriel, à névoa que se erguia em torno de seu corpo, rindo daquilo tudo. Às quartas-feiras, elas enfileiradas, todas em vestidinhos amarelos, declamando poemas baratos, rimados, e acenando lenços brancos perfumados. O sistema de alto-falante encarnando o fino da fossa. Soava patético. Melancólico.

Noutro ponto do rio, se punha outra vez no papel de fazer o querer feminino dobrar-se diante dele. O livro a tiracolo, como de costume. Teatralizou concentração ao vislumbrar o par de pernas à curva. Longas. Instigantes. Boca que convidava. Olhos que desafiavam. Era ruiva. Passou sem notá-lo. Ou simulou dele não se aperceber.

Artimanha fatal. O tempo de uma respiração, e lá estava Gabriel, embalado em conversa vencida: “Nova por aqui?”. Ela monossilábica, o achando deslumbrante, mas ligeiramente ridículo. Armou ar de desinteresse, a que ele se arrastasse ao encontro de tudo o que ela simbolizava: a condição de intangível. Como funcionou. Ele se acercando, ela disse um até breve e partiu.

Voltaram a ser ver dia seguinte. Mesmo lugar. A mulher se insinuando e escapulindo. Pareciam miragem. Eram só uma silhueta vaga se esgueirando ao arco da ponte. Foram, jeito leve, afinando assuntos. E, pouco mais de uma semana, acreditavam piamente em roteiro de novela. O de que haviam nascido um para o outro. Ela, que se pulverizava às investidas masculinas, e ele, que se punha inalcançável à fascinação feminina, tinham enfim achado um relógio para o pêndulo que os movia.

Talvez faltasse agora a parte mais difícil. Contar tudo. Foi ele quem tomou a iniciativa. Aquela forma de tocar as duas mãos, baixar o olhar, engasgar nas palavras denunciava desconforto. Foi reto, as órbitas num lacrimejando de angústia: “Eu sou um boto!”. Estranhou por inteiro ela gargalhando, rodopiando, suspirando e parando à sua frente, o rosto se desmanchando em choro de contentamento. Como houvesse tirado um peso supremo das costas.

Entrelaçou seus dedos aos dele e o direcionou rumo à margem. Pulou e o trouxe junto. Ao turbilhão do mergulho, o contorno do corpo foi se transfigurando lentamente. Ele atônito. Até que ela, por fim, se apresentasse: prazer, uma sereia extraviada que, provando do delicado sal de amar, reencontrara suas águas. Seu mar.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas.



4 comentários:

  1. Belo encontro. Não mais corações destroçados.
    Finalmente ele encontrou o seu amor na figura de uma bela sereia.
    Beijos

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  2. Humor e poesia dão o tom raro a este conto de mestre que escapole do comezinho pelo fantástico e sempre se dá bem. O boto e a sereia, hein! Obra-prima à vera!!! Parabéns, caro Murta!

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  3. Belo que chega! Em comum, a água, e enfim no mar.
    Destaco: " A de, desejado, sempre fugir. E, fugindo, se eternizar como lembrança."
    Mas há muito mais a destacar.

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  4. Todos convidados para um sugestivo mergulho....

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