segunda-feira, 25 de janeiro de 2010




Rosas vermelhas

* Por Celamar Maione

Escovei os dentes, lavei o rosto, passei um perfume e dei uma olhada no relógio: sete e meia da noite. Saí do plantão e antes de voltar pra casa, passei num boteco perto do hospital e pedi pão com pernil e um refrigerante. Fazia meu lanche olhando pra televisão do bar, quando um casal discutindo entrou e sentou do meu lado. A mulher estava com um vestido vermelho curto e uma maquiagem carregada. Os cabelos loiros estavam presos num rabo de cavalo. O homem vestia uma calça jeans e uma camiseta branca. Gesticulava, falava alto e grosso. O bar tinha pouca freguesia. Ouvi com atenção a conversa. Ele falava, e ela chorava.
- Será que você não entende? Acabou. A minha mulher está desconfiada.
- Mentira . Você quer pular fora. Sei que já tem outra.
- Outra? Duas me dão trabalho demais. Vou arrumar três? Só se eu fosse maluco.

O choro da mulher aumentou. Olhei de canto de olho e percebi que o homem estava impaciente. Franzia a testa, batia com os dedos na mesa e olhava para o teto. Num gesto brusco, empurrou a cadeira, se levantou e saiu sem dizer nada. O choro da mulher aumentou. Fiquei com pena. Peguei um guardanapo de papel e ofereci.

Ela enxugou as lágrimas e assoou o nariz:
- Viu só o que ele me fez? Vocês não prestam.
- Não me mete nos seus rolos. Cheguei agora. Não tenho nada com isso.

Ela pulou para a minha mesa e agarrou minhas mãos:
- Desculpe, não falei por mal. Estou muito nervosa.

Dei um sorriso de cortesia, peguei um palito e fiquei brincando com ele para descarregar a tensão. A mulher pegou outro guardanapo e voltou a assoar o nariz. Com voz agressiva me perguntou:
- Você é casado?
- Pra que você quer saber?
- Curiosidade, mas se não quer dizer respeito sua privacidade.
- Muito obrigado. Bom, eu já vou indo. Boa sorte.
- Não, fica comigo – segurou na minha camisa num gesto de desespero.
- Preciso de companhia. Se você for embora, posso fazer uma besteira.
- Eu tô cansado. Saí do plantão agora e preciso dormir.
- Você é médico?
- Enfermeiro.
- Você trabalha no hospital da esquina?
- Trabalho. Espero que você não precise, mas se precisar é só me procurar. Desculpe, tenho que ir.

Ela insistiu. Puxou assunto e segurou meus braços pedindo para eu ficar. Olhei mais uma vez o relógio : Nove horas. Penalizado, concordei.
- Qual é seu nome? Você não me disse seu nome.
- Elisa , mas pode me chamar de Isa.
- Tá bom, Isa.

Engrenamos uma conversa animada. Isa era uma mulher carente, meiga e engraçada. Pedi uma cerveja para relaxar. Ela bebeu comigo. Duas horas depois já tínhamos entornado cinco cervejas. Paguei a conta, agradeci a Isa e me preparei para chamar um táxi.
- Bom, acho que agora você já está melhor. Está rindo à toa.
- Você me fez bem. Não sei o que teria acontecido se eu não tivesse te encontrado.
- E você? O que vai fazer a respeito do cara?
- Nada. Há dois meses ele vem tentando terminar comigo. Ontem ensandeci e liguei vinte vezes para o celular dele.
- Você é obcecada. Fiquei com medo agora – brinquei.
- Pois é. Acho que ele também ficou com medo. Hoje ele me procurou porque ameacei ir na casa dele contar para a esposa que somos amantes.
- Isso não se faz – comentei debochado - Sem chance de volta, então?
- Infelizmente, sim. E você? Ainda não me disse se é casado. Se tem alguém.
- Você é muito curiosa. Eu preciso ir.

Andávamos sem destino. Isa me olhava com jeito de cachorrinho pidão. Esperei-a se aproximar. Ela tomou a iniciativa. Pegou nos meus braços, ficou na ponta dos pés e falou baixinho no meu ouvido:
- Dorme comigo. Só hoje. Estou tão carente.

Cocei a cabeça. Olhei mais uma vez para o relógio: Meia-noite. Não deixaria uma mulher sozinha na rua, àquela hora. Peguei Isa pelo braço e fomos caminhando em ziguezague pelo meio-fio. A noite estava quente e o céu estrelado. Um vendedor de rosas passou ao lado de Isa, e ela o fez parar:
- Adoro rosas vermelhas. Compra pra mim?

Peguei uma rosa e entreguei para ela. Ficamos em silêncio durante cinco minutos.
- O que aconteceu? Você ficou triste de repente. Falei alguma coisa que não devia?
- Não é nada com você. Coisa minha.

Olhei para o letreiro e puxei Isa:
- Tô com sono. Vamos dormir?

O quarto era pequeno, simples e limpo. Uma cama de casal, um espelho no teto, duas mesinhas de cabeceira e um banheiro com cheiro de eucalipto. Isa entrou no banheiro, tirou a roupa, e abriu o chuveiro.
- Você não vem? A água está uma delícia.
- Bom proveito.

Deitei de cueca e liguei a televisão em qualquer canal. Apenas para distrair meus pensamentos.

Isa voltou pra cama de roupão. Fingi que dormia. Ela desligou a televisão, passou a perna por cima do meu corpo e logo adormeceu. Acordei com o sol entrando pela fresta da cortina. Olhei o relógio e dei um pulo. Dormi demais: Nove e meia. Tinha que voltar pra casa.. Chamei Isa. Ela se espreguiçou durante alguns segundos, vestiu a roupa e não fez comentário sobre a noite anterior. Olhei para ela coçando o queixo:
- Vou direto pra casa. Tenho muita coisa pra resolver.

Isa deu apenas um sorriso e balançou a cabeça constrangida. Pedi um café simples com torradas para não sairmos de estômago vazio. Não toquei nas torradas. Bebi duas xícaras de café sem açúcar. Na rua nos despedimos sem promessas. Dei-lhe um beijo no rosto. Isa passou as mãos pelos meus cabelos:
- Obrigada por ficar comigo. Você é um cara legal.

Assim que virei a esquina, entrei numa floricultura e comprei um buquê de rosas vermelhas. Peguei um ônibus e segui para o Catumbi com um nó preso na garganta.

Cheguei no cemitério perto da hora do almoço. Segui direto para a sepultura de Elaine. Ela morreu atropelada na esquina de casa, faltando uma semana para o nosso casamento. Adorava rosas vermelhas, filmes de suspense e sorvete de creme.

Coloquei o buquê em cima da sepultura e fiz uma oração.

Saí do cemitério com o sol a pino. Comprei uma garrafa de água mineral e peguei um ônibus para o Engenho Novo. Preciso ir ao banco e depois passar na casa da minha mãe. Sete horas tenho plantão em outro hospital.

* Radialista e jornalista, trabalhou como produtora, repórter e redatora nas Rádios Fm O DIA, Tropical e Rádio Globo. Foi Produtora-Executiva da Rádio Tupi. Lecionou Telemarketing, atendimento ao público e comportamento do Operador , mas sua paixão é escrever, notadamente poesias e contos.



6 comentários:

  1. Talvez se ele não estivesse tão impregnado de
    lembranças...talvez.
    Parabéns Cel.
    Beijos

    ResponderExcluir
  2. O conto beira a obra-prima. O cotidiano átono de quem vive anestesiado, no avesso sem cor nem sabor do êxtase, revela que, neste mundo de prazos já esgotados, vivemos em débito, personagens de um obituário de jornal.

    ResponderExcluir
  3. Celamar, o conto é ótimo! Em meio ao tumultuado cotidiano, nem sempre é possível vivenciar as emoções com profundidade. Beijos!

    ResponderExcluir
  4. Quem deu colo e ombro estava precisando mais do que a outra. A rotina esmaga qualquer um, não dando tempo para lágrimas e condolências. Sete dias e acabou. Como dizia a minha mãe: "cada um no seu canto sofre do seu tanto". O cenário, as pessoas e os diálogos são o que são pela sua maneira convincente de escrever, Celamar.

    ResponderExcluir
  5. Nubia, as lembranças, ás vezes , nos impedem de viver o presente. Obrigada pelo comentário.
    Daniel, " O conto beira uma obra-prima ?". Obrigada. Vou dormir feliz.
    Sayonara, sentimentos e pessoas hoje são descartáveis. Obrigada pelo comentário.
    Mara, a rotina esmaga e brutaliza. Obrigada pelo seu incentivo, sempre. bj

    ResponderExcluir
  6. A que leva a solidão, a carência afetiva...Lindo conto, Celamar.você deixou tanta coisa nas entrelinhas. Coisa de escritora mesmo! Parabéns!

    Beijos

    ResponderExcluir