quarta-feira, 27 de janeiro de 2010




Dançaram sob a luz brumosa do Maconhão

* Por Marco Albertim

Mesas vazias. Dois casais urdiam a continuação do delírio noutro retiro, em alcova multicor, como os olhos chispando liamba. Maújo e Francis, unidos desde o começo pelo desvario da rumba, afrouxavam, atenuando indivisas culpas.

Gertrude sugerira uma reunião com base em que artigo dos estatutos? Desarticulada há muito do Partido, queixava-se da ausência de guia, para não cair no desatino pequeno-burguês. Dizia-se amputada; longe da direção, com o exercício da autocrítica garantia a manutenção do perfil de esquerda.

Nada de sugestão! Tirara proveito da deixa de Maújo para convocar a reunião, retomando com orgulho, vaidosa, o antigo pragmatismo que lhe dera fama de militante cricri. Queria travar a luta de classes no relacionamento pós-amoroso, não dar trégua a simulações de amor. “Camarada Maújo, eu o acuso de manipulação de sentimentos!” Gertrude não podia convocar um júri, formalizar acusação. Podia juntar um arrazoado classista, duro, dramaticamente rubro, para opor o comportamento anárquico dele ao código proletário engendrado por sua lógica relâmpago. “Une petite réunion!”; o francês inesperado à luz proscênica do farol, incensando desconfianças. Ah, Gertrude... Na cama, insurrecional; na luta de classes, animosa.

Maújo usou todo o estoque de fichas e comprou mais; mudava de música e, via de regra, voltava à primeira. Francis, coquete, sabia que sua silhueta passeava na manipulação que ele fazia da letra. Deixou-se conduzir por síncope, na inflexão do cantor, nos volteios do corpo, no rum amargo, na lambujem dos beijos. Logo o sol filtraria luz nas telhas, mostrando o chão poento, um verso fescenino rabiscado na parede, a porta de saída. A luz indesejada podia significar ou trazer a possibilidade de ruptura do contrato que tivera como único aval o bastão do maestro.
– Mais duas doses

Quis dizer: não desçam a cortina. O garçom trouxe os dois runs. Maújo não era de dar gorjetas, mas deixaria o troco na mesa como parte da celebração; dupla celebração porque não teria que sentir remorsos depois que fodesse com Gertrude; e sentiria o gozo do macho na fêmea nunca vista, só espreitada, ali, disposta a emprenhar com a fecundidade de sua sintaxe, de seu caralho. O dia os flagrou com os cotovelos sobre o frio mármore da mesa. A umidade dos copos, fragmentos de gelo no reboliço dos dedos no rum, um prato com azeitonas e palitos, inundados. A mesa era um repositório de bactérias, de crenças jorradas; um altar recém-venerado, sem toalhas. A despesa veio em nota com cabeçalho ocupado por lilases roxas; o papel recendia a patchuli, como o fino gargalo de Francis.
– Ningún passaron!

O garçom embolsou a gorjeta, deu com a mão e não homenageou La Passionaria.
Na pousada à beira-mar os gritos de banhistas abafavam os gemidos de Francis. Toda a praia fora tomada pela arraia-miúda do arrabalde.
– Um dia isso aqui será um balneário sem sífilis.

Maújo fazia do costume de dar chances à rafaméia um ofício. Três temas o comoviam em particular: cultura, lazer e saúde. Entretinha-se nas carnes de Francis sorvendo a viração marinha, purgando-se sentenciosamente sobre o devir. O corpo branco dela, estremecendo sob a lixação de sua língua, servia de embalo às convicções políticas.
– Você já teve sífilis?

Sabia que ele não tinha. Mas quis provocá-lo, conhecer pormenores da carnação. Ele falou do mal-de-coito para familiarizá-la com as intimidades do sexo. Ouviu-o sem repulsa. Era a primeira vez. Queria sugar cada pingo de sua luxúria.
– Nem sífilis, nem gota. Tenho uma papa muito grossa nos escrotos.

Francis riu, pressentindo a luxúria de Maújo nos limites, riu feliz com a possibilidade de se apropriar da fervente luxúria. Ele, celebrante, manteve o decúbito com o tórax sobre o ventre dela; sentiu nas escamas do rosto mal barbeado, a coifa escura dos pentelhos podados nas laterais, com um traço em declive no meio. A felação mútua levou-a ao estupor. Maújo estremeceu, inda que interruptivo, ao cravar as unhas no colchão de onde veio a lembrança dos recontros com Gertrude. A ruptura proposta por ela, desobrigara-o de reparos. Gertrude se fora, devolvera-lhe o anel cuja safira refletira as primeiras fodas dos dois. Sentiu-se, pois, único legatário sem encargos de foro. Julgou-se usurário, não viu diferença entre os remorsos e o pesar pelo esbulho cometido. Sopesou o anel enquanto Francis se deixava amumiar. A safira não refletia os espasmos da boca de Francis. Trouxe-a para perto do tórax. A pedra há muito embaçara, era um saponáceo; como seu coração em relação a Gertrude, vago e desculto. Francis imaginou que a oscilação das águas irrompera na janela mourada, e regurgitou sem fôlego sob o jato do esporro.

Dormiram nus sobre o lençol úmido de suor e de plasmas; dormiram para restaurar as forças. Acordaram com o calor, com o ruído dos banhistas. A janela fora aberta. Abraçados, julgaram-se acima das ondas.

Depois do banho de mar, voltaram para o Maconhão. Na mesma mesa, o mesmo garçom. Ovos com presunto, pães fatiados, margarina, suco de laranja. A celebração não fora interrompida. A Wurlitzer arrotava com fastio o mesmo acorde sensual da noite.

Francis penteara os cabelos. O rosto sardento dava-lhe a aparência de um leãozinho. A encolhida alegria da boca, com movimentos circulares no queixo, realçando a sonoridade dos acordes. Quis voltar para a pousada. Maújo deu-lhe a chave do aposento, disse que queria andar, juntar idéias. Foi assuntar o juízo na quietude do Alto da Sé, numa pedra de cantaria à sombra de um fícus de copa fechada.

(Capítulo do romance "Marx e Ogum no Alto da Sé")

* Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.


2 comentários:

  1. Ótima narrativa na qual consigo
    vislumbrar os mínimos detalhes
    e perceber as sensações.
    Abraços

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  2. A narrativa e muito boa mesmo mas esse nome maconhao....raxei mano

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