terça-feira, 19 de janeiro de 2010




Cidade do medo

* Por Laís de Castro

Vende, não vende, vende, não vende, o homem vende, não vende, quem compra muda os funcionários não muda, muda, não muda. Com o tempo de indecisão aumenta a ansiedade e o trabalho começa a se perpetrar mais triste, menos eficaz, tartarugado. A venda pode dar certo, mas também pode não dar certo, uma gangorra sem fim, sobe, desce, sobe, desce e nunca aparece. Merece. Não merece.

Um novo emprego, um novo, encarar as mudanças, a vida nó cego cada dia mais cego, sofrendo igual a mataburro de cobra. Dia após dia e você nessa estranha morbidez, tonto de sono, uma tontura que nem mil horas de sono revertem, a boca caída para os lados, os olhos baços, a feição em bruxa, a raiva exposta.

A purgação dos deuses pagãos é a sentença dos homens, o que tiver que acontecer, acontecerá. A ambição humana quer assentar seus tijolos em terreno seguro, acender a lareira, encontrar a mesa posta e farta, minha amiga, parta antes que tudo seja vendido, trocado por milhões abstratos, abstração, pavor do futuro. Quando um pintassilgo voa, o outro espera. Quando um pintassilgo pousa, o outro decola. Nada de deixar o ninho ao deus dará, diz a lenda, mas ela também pode não ser verdadeira. Quando uma mosca voa, o sapo pausa inerte para dar o bote na hora exata, vapt, acabou-se o que era doce para a mosca, o sapo comeu e arregalou-se.

Vende, não vende. Quando o martelo for batido tudo vai pelos ares. Antes disso a certeza infinita de que o futuro foi ontem e hoje é o presente. Presente de aniversário, presente de Natal, presente de bodas, quem casou, casou, quem não casou não casa mais.

Todos os dias aquele mesmo caminho, entra á esquerda, entra a direita, vai até o fim da rua, passa o viaduto, vence as enchentes, descabela-se no trânsito, entra à direita, pára no farol, esquece os óculos, manda buscar, ensaia uma fuga prevista, entra à esquerda e agora vem esse cara dizendo que vende. Aquilo era o meu segundo lar, eu passava mais tempo lá do que. E é água, e é café, e é almoço e até um cigarro bissexto com a cabeça, o tronco e um membro superior do lado de fora da janela. E é relatório, e é briga, é reunião de gestão, de coração, tudo tão certinho como uma cama feita com lençóis alvos e macios, o aroma da malva burlando os sentidos, a intensidade instigada. O tiro passa de raspão.

Eu gosto da minha sala pensativa, azul e acinzentada como uma pomba jovem, a mesa de madeira clara como mel, o computador esperto como criança na praia.

Semente, planta, árvore, fruto. Colheita. É assim. Tudo, todos. Você trabalha e colhe o resultado. Ele e ela e eu e nós e vós e todos funcionam assim, mas não realizam. São tocos de um outro machado. São alabardas para corpos mais jovens.

Tudo foi devidamente varrido para baixo do tapete, as vozes silenciadas, os segredos encofrados, as armas depostas, os sobressaltos engomados, a fome saciada, as brigas familiares suplantadas. É necessário um senso de lógica além do natural, porque ali, em cada um, há pele sobrando para fazer mais dois. Procure os sintomas até que se configure o diagnóstico. Com pesar, sem fôlego.

Segure-se, porque vamos decolar. Descolar da terra e voar para o mais alto possível para que a língua do sapo não. Para que se possa sair ileso dessa balbúrdia, para que se possa pousar, pintassilgado.

No meio do caminho imaginou-se voltando no último dia. Já não haverá amanhã. O destino foi cortado rente, tosado pela raiz, esmagado como folha seca sob patas de elefantes. Mudou a sina, pronto acabou. Pensou. Não acabou, é um novo início. Removam-se os obstáculos, pois as estradas se renovam. O pior de vender é essa tristeza de renovação, ganha pão, não, samba, baião, bailão. Vamos dançar a valsa dos covardes, dos loucos, dos descartados, desacatados, embotados pelos soluços altos e suspiros baixos. No último dia.

Está longe esse dia.

Ou perto, tão perto que não se pode vê-lo.
Ou não se quer.

Toda verdade, como a faca antiga, tem dois gumes. Pense de novo. Não fique imaginando fatos, encare o real. A sentença final, certa ou errada, mas final. O estrondo virá de cima e todos vão correr. O medo vai tomar conta da cidade, das pessoas de qualquer idade, da amizade, da inimizade, bem feito pra ele, vendeu, acabou, pronto. O frio está mais frio, o escuro está mais escuro. Eu não consigo mais dormir de luz apagada.

Cerveja bem gelada, quase congelada. Encosta a lateral da garrafa na nuca que é bem relaxante. Depois vira, engole de um gole, todos vão ter que engolir. Melhor bem gelada, quase congelada.

Vende, não vende, sobe e desce e nunca aparece, céu, inferno, céu, inferno, bem-me-quer, mal-me-quer, vende, não vende, bem-me-quer, mal-me-quer. Bem-me-quer, mal-me-quer.

Bem-te-vi!


* Jornalista desde os 21 anos, quando estreou na tradicional revista Realidade, trabalhou 18 anos na Editora Abril, vários anos na Carta Editorial e outros mais na Azul. Ganhou 3 prêmios Abril, um concurso de contos infantis no Estado do Paraná e é autora do livro de histórias para adultos: “Um Velho Almirante e outros contos”, publicado pelo selo ARX (Siciliano). Atualmente dedica-se apenas à Literatura.






Um comentário:

  1. Decidir ou não decidir.
    Viver ou disfarçar.
    As vezes essa vida da gente é tão besta...
    beijos Laís

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