segunda-feira, 28 de dezembro de 2009




Sem vaias

* Por Daniel Santos

Magnífica – ela mesma dizia de si. E ninguém discordava, porque, dia após dia, noite após noite, infatigavelmente, impunha seu pessoal espetáculo, aplaudido em cena aberta por amigos e familiares, seduzidos.

No centro do palco, imersa em luzes do esplendor, ela dominava toda a circunstância. Muito habilidosa, representava e investigava a reação de cada espectador, a um só tempo. Tinha de fasciná-los, sem cessar.

Sim, ela controlava a própria adoração, mas, com o tempo, descuidou do repertório, esqueceu de renová-lo. Tornou-se, assim, previsível, sem surpresas nem emoção, e os aplausos diminuíram.

Perceberam que interpretava com técnica pífia, cheia de chavões e de clichês. Já não era propriamente espetáculo, mas a exposição constrangedora de alguém que o talento abandonara: uma caricata.

Perdeu platéia, portanto. A maioria dos assentos sem ninguém, ela se aproximou da beira do palco para se certificar da solidão, da ruína. Caiu no fosso da orquestra para nunca mais reaparecer. Nem vaias houve.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.

5 comentários:

  1. Que pena, esqueceu-se da bendita previsibilidade
    e perdeu talvez um pouco da humanidade ao se render apenas aos elogios...
    Adorei Daniel
    Beijos

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  2. Tudo no mundo parece seguir uma curva que ascende, chega ao cume e depois desce.Quase sempre isso acontece com os artistas. Quando se inicia é preciso se preparar para a decadência. Quantos casos não presenciamos entre os cantores,os atores e também em outros campos, como no esporte?
    É triste, mas é a vida. Talvez seja melhor quando o sucesso chega tarde como foi o caso de Cartola, de Cora Coralina e outros que não conheceram a decadência. Conheceram sim, as dificuldades para ver seus trabalhos valorizados. Belo texto, Daniel, como sempre.
    Beijos
    Ris

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  3. A decadência é tão terrível quanto a doença na velhice. Algumas vezes não há como deixar o palco, por todas as questões possíveis. Quando há amigos, a ajuda poderá acontecer, com uma saída simbólica, sem precisar cair do palco, isso sim, um triste vexame.

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  4. Nubia, Cel e Mara, obrigado pela atenção de sempre. Na verdade, escrevi o texto pensando numa sedutora que conheci e cujo teatro visava unicamente à promoção pessoal.

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  5. errata: onde se lê Cel, leia-se Ris.

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