segunda-feira, 21 de dezembro de 2009




Sem piedade

* Por Daniel Santos

Nos reencontramos na festa de um amigo em comum e, embora sem notícias um do outro há mais de quarenta anos, nos reconhecemos de imediato. E voltei a detestá-lo com a fúria irracional dos verdes anos.

Diante dos demais, demo-nos tapinhas amistosos como íntimos de longa data. Íntimos, sim. Mas havia contas a ajustar, porque, muitas vezes, a memória põe a criança no lugar do homem e derrota a sensatez.

Por mais que o tempo passe, não esquecerei que ele foi o primeiro a ter bicicleta, mas nunca me emprestava. Nunca. Depois, na faculdade, ganhou carro e convidava a todos para as farras ... menos a mim!

Nada justificava a discriminação, exceto sua ojeriza a amigos de baixa renda. Isso divertia os esnobes, cujas gargalhadas ainda ouço em pesadelos. Na festa, no entanto, ele se mostrava bastante solícito.

Descasado e desempregado, vivia péssima fase, mas não o consolei. Em vez disso, estendi dedinhos de cobiça e gula à bandeja de brigadeiros. Peguei um, dois, na celebração da mais mesquinha das revanches.


* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.

7 comentários:

  1. Mesmo parecendo politicamente incorreto
    ou mesquinho de nossa parte, isso é humano.
    Já passei por isso amigo, mas lendo o seu
    texto acabei por me divertir e muito.
    Deixa um brigadeiro pra mim.
    beijos

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  2. Imperfeitamente humano.
    Também quero um brigadeiro.
    Guarda um pra mim ?

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  3. Como dizia o filósofo Raul Seixas, "se subiu tem de descer". Nem sempre é assim, mas quando acontece pode ter traços dramáticos, especialmente quando a doença chega junto.Bom para refletir, e melhor ainda ler Daniel. Sua prosa tem características da mais fina escultura, tão perfeita que desbanca poemas, e sem fazer força. Boa Daniel!

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  4. Um brigadeiro apenas? Vocês merecem mais, e estendo uma bandeja inteira. Fartemo-nos no regozijo de sermos nada mais que humanos.

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  5. Mais doce que o brigadeiro, só o sabor da justa revanche. Mais doce que a revanche, só a forma brilhante e concisa com que foi relatada. Um regalo! Abraços e bom Natal, mestre.

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  6. Obrigado, Marcelo. Feliz Natal pra vc tb!

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  7. Daniel

    Que raiva daquelas crianças que tinham bicicleta e não me emprestavam...Identifiquei-me ploenamente com o narrador. Se eu tivesse oportunidade de reencontrá-los...Ah!...não deixava nem um brigadeiro sequer pra ele(s)
    Beijos
    Ris

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