sexta-feira, 25 de dezembro de 2009




Natal no shopping

* Por Urariano Mota


Nesses dias de Natal, não quero lembrar por quê, fui ao shopping. Fui, e comecei a circular, o que no shopping é uma forma de andar. Circulo e circulo, enquanto rumino coisas que para mim mesmo não estão claras. Penso em beber, ah, como cairia bem um chope no shopping, como desceria bem o líquido sobre uma garganta sem eloquência. Então, súbito, cai sobre mim um som belo, lindo, que não identifico de imediato de onde vem. Sim, é Natal, mas não estou dentro de um conto de Dickens. Então, de onde vem essa beleza que escuto, perdido num mundo de mercadorias?

“Eu preciso descobrir
a emoção de estar contigo
ver o sol amanhecer
como um dia de domingo...”

Olho, estou em frente a um restaurante aberto, e as pessoas bebem e comem e gargalham e batem copos e fazem pedidos com escândalo, aos gritos, possessas e porcas. Mas ainda assim a beleza resiste por sobre o mar de insensibilidade:

“Eu preciso respirar
o mesmo ar que te rodeia
e na pele quero ter
o mesmo sol que te bronzeia ...”


Então eu descubro de onde vem esse sopro de Dickens. Uma pianista velha toca solenemente a um canto. Ela não toca, vejo, ela desce os dedos com uma gravidade, com uma rigidez quase de mármore duro, como se fosse uma estátua que apenas movesse os dedos. Para quem toca essa velha pianista? Para que coração ela se dirige diante de uma barreira de barbárie?

“Eu preciso te tocar
e outra vez te ver sorrindo
e voltar num sonho lindo...”

Ela me lembra de imediato os comediantes, os palhaços, os clowns que não riem. Mas não, essa lembrança diz respeito somente a seu rosto que não reflete a emoção do que toca. Os palhaços têm melhor sorte, porque o público a eles responde. A pianista velha, com a sua rigidez facial, percebo então, é um alto escudo para que não a insultem mais do que fazem agora enquanto gritam por mais carne e mais vinho e mais champanhe e mais a porra toda que o dinheiro compra. Agora compreendo que ela, dura como a pedra, responde com um “desprezo-os como me desprezam”. Aos gritos de carne e cerveja e chope, ela bate mais forte no teclado:

“Faz de conta que ainda é cedo...”
- Carne!
“.. e deixar falar a voz
a voz do coração.”

Que dignidade há nesses artistas que tocam sem que ninguém os escute! Saio. A decoração do shopping é de um vermelho extravagante. Pois esta não é a cor do Papai Noel? Saio, preciso de ar, vou para a rua. O mundo desconcertado pode não merecer concerto, mas tem lógica. Existe um fio que vai da festa da mercadoria até o público que não ouve a música de um artista digno. Tudo é shopping.

* Escritor e jornalista

6 comentários:

  1. Nada mais representativo do "Espírito de Natal" do que esta crônica do Urariano...
    CF

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  2. Um dos melhores presentes que ganhei neste Natal foi tua crônica, caro Urariano, onde leio expressões, como "garganta sem eloqüência" e "dedos de mármore duro", criações originais de um escritor maiúsculo. O Natal é uma festa triste, mas salva-se desse desalento a tal pianista que toca, na verdade, para quem tem ouvidos para ouvi-la. Esses entendem o sinal dos anjos e se salvam da mediocridade, da mesquinharia. Bendito sejas!

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  3. Sempre que descia ali perto da Rua da carioca
    bem em frente ao metrô, parava para ouvir um pouco do "sax" solitário do músico, enquanto a maioria corria...
    beijos Urariano.

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  4. Fiquei imaginando você caminhando em um dos shoppings do Recife. Tão "perdido" quanto Sócrates na Grecia, constatando que não precisava de nada do que estava à venda, para viver.
    Um dos mais belos textos sobre o Natal que já li. Parabéns, Urariano!
    Um Feliz 2010 para você e toda sua Familia!

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  5. Não responder aos comentários de vocês é o mesmo que ingratidão.

    O que seria, o que é, o que será um escritor sem os amigos e companheiros de ofício?

    - Será o mesmo que a pianista da crônica.

    Abraço fraterno.

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  6. A orgia alimentar de uma turma em algazarra não condiz com música de piano. Os porcos não comem pérolas, mas a sua sensibilidade, caro Urariano, viu a mulher tocar, escreveu e nos tocou. Texto maravilhoso, sensível, e natalino, de quem vê e ouve o que os brutos não podem escutar.

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