quarta-feira, 18 de novembro de 2009




Uma crônica por sentença na Justiça

* Por Seu Pedro

Os tempos modernos oferecem-nos computadores, máquinas fotográficas digitais, celulares que concorrem em funções que antes deviam pertencer a um só aparelho. A Internet, facilitadora da comunicação, propiciou-me receber, vinda pelo e-mail de um amigo morador em São Paulo, uma notícia que estava bem aqui ao meu lado, na Bahia. E pela demora havida, só agora venho dar parabéns a um juiz, da tão interiorana comarca de Conceição Coité, nesta terra de todos nós em que vivo.

Lá, bem distante da cidade do Salvador, que há de lhe abençoar, o juiz de direito (e bota direito nele) Doutor Gerivaldo Alves Neiva, assinou sentença magnífica, em 21 de setembro de 2005, contra o poderoso grupo Industrial Siemens do Brasil e a não menos confusa Loja Insinuante, e ainda contra a Eletrônica Starcell, indicada para consertos de aparelhos ainda em garantia.

Um marceneiro, José de Gregório Pinto, tendo comprado um telefone celular para agilizar seus pequenos negócios, utilizado-o adequadamente e, ao fim de dois meses, tve-o mudo, solicitou junto à Justiça responsabilização solidária do fabricante e do fornecedor. A maneira como o juiz relatou a sentença é uma redação deliciosa; prova de que até os textos jurídicos deixam de ser chatos, se escritos por quem também sabe julgar se farão uma boa leitura.

Diz o Juiz: “Vou direto ao assunto. O marceneiro José de Gregório Pinto, certamente pensando em facilitar o contato com sua clientela, rendeu-se à propaganda da Loja Insinuante de Coité e comprou um telefone celular, em 19 de abril de 2005, por suados cento e setenta e quatro reais. Leigo no assunto, é certo que não fez opção por fabricante. Escolheu pelo mais barato ou, quem sabe até, pelo mais bonitinho: o tal Siemens A52. Uma beleza! Com certeza foi difícil domar os dedos grossos e calejados de marceneiro com a sensibilidade e recursos do seu Siemens A52, mas o certo é que utilizou o aparelhinho até o mês de junho do corrente ano e, possivelmente, contratou muitos serviços. Uma maravilha!”

E continua “Para sua surpresa, diferente das boas ferramentas que utiliza em seu ofício, em 21 de junho, o aparelho deixou de funcionar. Que tristeza: seu novo instrumento de trabalho só durou dois meses. E olha que foi adquirido legalmente na Loja Insinuante e fabricado pela poderosa Siemens… Não é coisa de segunda-mão, não! Consertado, dias depois não prestou mais… Não se faz mais conserto como antigamente! Primeiro tentou fazer um acordo, mas não quiseram os contrários, pedindo que o caso fosse ao Juiz de Direito”.

E continua: “Caixinha de papelão na mão, indicando que se tratava de um telefone celular, entrou seu Gregório na sala de audiência e apresentou o aparelho ao Juiz: novinho, novinho e não funciona. De fato, o Juiz observou o aparelho e viu que não tinha um arranhão. Seu José Gregório, marceneiro que é, fabrica e conserta de tudo que é móvel. A Starcell, assistência técnica especializada e indicada pela Insinuante, para surpresa sua, respondeu que o caso não era com ela e que se tratava de ‘placa oxidada na região do teclado, próximo ao conector de carga e microprocessador’ Seu Gregório: - O que é isto? - Quem garante? O próprio que diz o defeito, diz que não tem conserto!”.

Continua o magistrado no escopo da sentença: “Para aumentar sua angústia,.a Siemens disse que seu caso não tinha solução neste Juizado por motivo da ‘incompetência material absoluta do Juizado Especial Cível - Necessidade de prova técnica’. Seu Gregório: - O que é isto? Ou o telefone funciona ou não funciona! Basta apertar o botão de ligar. Não acendeu, não funciona. Para que prova técnica melhor? Disse mais a Siemens: "O vício causado por oxidação decorre do mau uso do produto. Seu Gregório: - Ora, o telefone é novinho e foi usado apenas para falar. Para outros usos, tenho outras ferramentas. Como pode um telefone comprado na Insinuante apresentar defeito sem solução depois de dois meses de uso? Certamente não foi usado material de primeira. Um artesão sabe bem disso. O que também não pode entender um marceneiro, é como pode a Siemens contratar um escritório de advocacia de São Paulo, por pouco dinheiro não foi, para dizer ao Juiz do Juizado de Conceição do Coité, no interior da Bahia, que não vai pagar um telefone que custou cento e setenta e quatro reais? É, quem pode, pode! O advogado gastou dez folhas de papel de boa qualidade para que o Juiz dissesse que o caso não era do Juizado ou que a culpa não era de seu cliente! Botando tudo na conta, com certeza gastou muito mais que cento e setenta e quatro para dizer que não pagava cento e setenta e quatro reais! Que absurdo!”

Sobre a loja solidária diz: “A Loja Insinuante, uma das maiores e mais famosas da Bahia, também apresentou escrito de advogado, gastando sete folhas de papel, dizendo que o caso não era com ela por motivo de ‘legitimatio ad causam1, também por motivo do ‘vício redibitório e da ultrapassagem do lapso temporal de 30 dias’, e que o pobre do seu Gregório não fez prova e então ‘allegatio et non probatio quasi non allegatio’ E agora seu Gregório? Doutor Juiz, disse Seu Gregório, a minha prova é o telefone que passo às suas mãos! Comprei, paguei, usei poucos dias, está novinho e não funciona mais! Pode ligar o aparelho que não acende nada! Aliás, Doutor, não quero mais saber de telefone celular, quero apenas meu dinheiro de volta e pronto!”

O Juiz lembrou: “Diz a Lei que no Juizado não precisa advogado para causas como esta. Não entende seu Gregório porque tanta confusão e tanto palavreado difícil por causa de um celular de cento e setenta e quatro reais, se às vezes a própria Insinuante faz propaganda do tipo: ‘leve dois e pague um!’ Não se importou muito seu Gregório com a situação: Um marceneiro não dá valor ao que não entende! Se não teve solução na amizade, Justiça é para isso mesmo! Está certo Seu Gregório: O Juizado Especial Cível serve exatamente para resolver problemas como o seu”

E vai além: “Não é o caso de prova técnica: O telefone foi apresentado ainda na caixa, sem um pequeno arranhão e não funciona. Isto é o bastante! Também não pode dizer que Seu Gregório não tomou a providência correta, pois procurou a loja e encaminhou o telefone à assistência técnica. Alegou e provou! Além de tudo, não fizeram prova de que o telefone funciona ou de que Seu Gregório tivesse usado o aparelho como ferramenta de sua marcenaria. Se é feito para falar, tem que falar! Pois é Seu Gregório, o senhor tem razão e a Justiça vai mandar, como de fato está mandando, a Loja Insinuante lhe devolver o dinheiro com juros legais e correção monetária, pois não cumpriu com sua obrigação de bom vendedor”.

E a sentença do Juiz alcança a Siemens: “Seu Gregório, para que o Senhor não se desanime com as facilidades dos tempos modernos, continue falando com seus clientes e porque sofreu tantos dissabores com seu celular, a Justiça vai mandar, como de fato está mandando, que a fábrica Siemens lhe entregue, no prazo de 10 dias, outro aparelho igualzinho ao seu. novo e funcionando! Se não cumprirem com a ordem do Juiz, vão pagar uma multa de cem reais por dia! Por fim, Seu Gregório, a Justiça vai dizer à assistência técnica, como de fato está dizendo, que seu papel é consertar com competência os aparelhos que apresentarem defeito e que, por enquanto, não lhe deve nada. À Justiça ninguém vai pagar nada. Sua obrigação é fazer Justiça!”

O juiz determinou que fosse enviada uma cópia para todas as partes: “Como não temos Jornal próprio para publicar, mande pelo correio ou por Oficial de Justiça”, arrematou e alertou: “Se alguém não ficou satisfeito e quiser recorrer, fique ciente que agora a Justiça vai cobrar indenização. Depois de tudo cumprido, pode a Secretaria guardar bem guardado o processo! Por último, Seu Gregório, os Doutores advogados vão dizer que o Juiz decidiu ‘extra petita’, quer dizer, mais do que o Senhor pediu e também que a decisão não preenche os requisitos legais. Não se incomode. Na verdade, para ser mais justa, deveria também condenar na indenização pelo dano moral, quer dizer, a vergonha que o senhor sentiu, e no lucro cessante, quer dizer, pagar o que o Senhor deixou de ganhar. No mais, é uma sentença para ser lida e entendida por um marceneiro”.

Talvez por isto, pelo efeito cascata ou pelo temor que a sentença da Justiça de Conceição do Coité já fosse jurisprudência, a Loja Insinuante de Guanambi entrou em um acordo comigo, e não tive que ir ao Juizado de Pequenas Causas. Naquele mesmo ano, antes do relato da sentença eu vinha sendo enrolado, e a loja dizia não para fazer o reembolso do valor de uma máquina fotográfica digital, marca Sansung, que também enviada para a eletrônica responsável pela garantia, voltou pior do que foi.

Não sei se foi coincidência, mas quando falei em ir à Justiça, o gerente da loja ficou cortês, e bota cortesia nisto! Trocou o valor da máquina, sem mais problemas, por outros produtos à venda. “Obrigado doutor por sua sentença. Sou um jornalista, artesão da notícia, de mãos calejadas, e.estendo o meu obrigado ao Seu Gregório, que não fez como muitos consumidores, que se conformam e compram outro aparelho”. E viva a Justiça Baiana!

* Seu Pedro é o jornalista Pedro Diedrichs, editor do jornal Vanguarda, de Guanambi, Bahia.

Um comentário:

  1. É bom saber que existe um magistrado que em vez de exibir sua lábia verbal, apenas proferiu com simplicidade uma sentença justa. Tomara que essa tendência se espalhe!
    beijos

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