quarta-feira, 18 de novembro de 2009




Sobre Eça de Queiroz, agitador no Brasil

* Por Marco Albertim


É oportuno escrever sobre o livro de Paulo Cavalcanti; porque põe em relevo a prioridade dos brasileiros sobre a riqueza nacional, a mudança de critérios na cobrança de impostos, e o ressarcimento de direitos autorais a escritores e criadores diversos. Os três problemas presentes na insurgência dos goianenses contra o predomínio português no comércio de Goiana, à época do Império; na revolta dos quebra-quilos quando da instalação do sistema métrico na cobrança de tributos; no uso dos escritos de Eça de Queiroz e de Ramalho Ortigão, sem o pagamento dos direitos dos autores, inda que para pregar a república e o abolicionismo. O livro chama a atenção para a aliança entre segmentos sociais distintos, quando se tem em mira um obstáculo comum. Em 1875, “levantaram-se vozes do povo, do pequeno comerciante e artesão ao funcionário público, do oficial da Guarda Nacional ao boticário, do padre ao ‘livre-pensador’, do caixeiro de loja ao advogado.”Um embrião de frente única contra as medidas judiciais do governo da província, em favor dos ‘galegos’ portugueses”.

Vale a pena reproduzir a narrativa da fuga dos “parrudos”, à iminência de morte; “...o ‘mata-mata marinheiro’ assumia proporções aterradoras. Toda a cidade jazia entregue à violência e à insegurança. Refugiando-se nas casas de brasileiros amigos; trancando-se nos armazéns de secos e molhados, por trás de portas fortemente guarnecidas; asilando-se nas igrejas e nos conventos; buscando refúgio até nos canaviais; batidos, assim, pelas apreensões e pelo medo – os portugueses fugiam, por modos e meios a seu alcance”. Uma prosa de bem com os fatos. A certa altura, Cavalcanti entrevê os fatos mais como figura literária do que como episódios de transição na história; diz ele: “...para um cronista que se não apegasse à realidade dos subsídios históricos, bem que seria encantadora a versão da queda de um governo, numa Província do Brasil, por causa de As Farpas e de Eça e Queiroz”.

Sobre o “empastelamento” do jornal A União, de orientação jesuítica, por populares, explica o autor: “Diante desses choques de rua, com a massa popular exercitando, infrene, a sua liberdade de crítica...” Há aqui o historiador registrando a perspectiva de mudanças. Mas logo abaixo, como que baixando a guarda, aduz: “Aos liberais e patriotas, como José Mariano, repugnava um atentado à liberdade de imprensa”. Em que pese o fato de Cavalcanti ter enxergado o caráter de classe da revolta dos “quebra-quilos”, inda que não o dizendo de modo explícito. Mas “A famosa revolução dos ‘quebra-quilos’, em Pernambuco, encontrou na repulsa do povo à decretação de novos impostos sobre os gêneros de primeira necessidade o seu caldo de cultura”.

Soube o autor enxergar “os problemas econômicos” por trás da animosidade de “goianistas”, recifenses e paraenses. E o fez com a ajuda do próprio Eça, que dissera na carta ao presidente da província “... há que o comércio de Pernambuco está nas mãos e nos cofres dos portugueses que, mais ativos ou mais inteligentes, o arrancaram dos cofres e das mãos pernambucanas...” O escritor português, aliás, inda que fazendo pouco de gestos e costumes do imperador, legitimou a obra de colonização, porque “... e então, vendo que nada fez a Pernambuco a civilização que há três séculos lhe mandamos, e que o Brasil recaiu na selvageria de então, julgaremos dever recomeçar pacientemente nossa obra, e tornar a mandar Pedro Álvares Cabral, para tornar a descobrir o Brasil!” É neste mesmo capítulo que o autor do livro aborda o estilo de Eça de Queiroz, e o faz com abundância de exemplos, com precisão miúda. Citamos apenas um caso, consta do romance Alves & Cia, em que Eça atribui qualidades animais a objetos – hipálage: “O escritório dormia no grande silêncio do dia feriado...” O capítulo é demasiado eciano, rende-se ao estilo que, então, rompia com o romantismo; e baixa a guarda ao caráter classista de sua obra. Como na reação de Eça e Ortigão à reprodução de As Farpas, sem que lhes fosse pago o devido numerário. Queriam os dois que o editor pernambucano se retratasse publicamente “como um criminoso...” Ao escrever Os Maias, Eça pôs o mesmo propósito no personagem Carlos Maia, “esbulhado nos seus direitos.”

Ao lembrar a origem de alguns nomes de famílias da aristocracia rural da cana-de-açúcar, diz Cavalcanti que a grafia prendia-se aos arroubos da vaidade. Assim, o editor de Os Farpões, opúsculo que se opôs a As Farpas, tinha como sobrenome Corrêa para se contrapor à correia, tira de couro. Belo flagrante. Já que se trata de uma resenha, dizemos que Paulo Cavalcanti deixou-se picar pela vaidade. Na nota do rodapé da página 185, citando “o famoso escritor Ernesto Guerra Da Cal, na sua portentosa obra Lengua e y Estilo de Eça de Queiroz (...), considera acertadas as minhas conclusões, classificando o meu trabalho de ‘convincente análisis estilístico del texto’”.

Ao tempo em que a esquerda aponta para a reforma tributária, para a reforma agrária, para a reforma educacional e para a democratização dos meios de comunicação, vale a pena (re)ler sobre goianenses que em grupos, em massa, em formação de frente única, peitaram a “galegada” pró-monopolista. O livro está na quarta edição. Tem o apoio do governo do Estado, via Companhia Editora de Pernambuco.

* Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

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