domingo, 29 de novembro de 2009




O Crítico Imaginário

(Melodrama serial)

* Por Luís Antonio Giron

I

A tarde despencava fervura pela rua mal coberta de pedras, alguns escravos acomodando o piso com marretas de madeira e o tum-tum-tum ritmado ecoando na ladeira. Leopoldo Gonçalves balança a cabeça com um muxoxo ao ler a carta acompanhada com a edição de 2 de janeiro de 1852, em letras góticas, do Der Beobachter am Mathiasstrom inaugurando a imprensa em Colônia Dona Francisca. Seu primo Wilfred Hans Zitter irritava-o desde criança, com seus pequenos dentes de rato declamando Fausto aos apenas sete anos. Que gênio e que asno, maldito cabeça de batata, resmungou. O dia terminaria como um completo fracasso não fosse a decisão que tomava ali, repentinamente assombrado pela inveja do primo bufão e pela certeza de que não assumiria o armarinho ensebado do pai, com mais percevejos que clientes e em dívidas com fornecedores de além-mar. Além de tudo, acabava de passar por Joana, que ontem suspirava em uis e ais profundíssimos nos depósitos da Casa M.M. Gonçalves e hoje recebia, nada contrariada, a corte de seu prometido em visita à capital.

Em seus 23 anos, concluía que nunca desejara algo com tamanha intensidade. Ao cruzar o portão de casa arrancando a camisa limpa do varal para recompor-se do verão especialmente úmido, que convertia Porto Alegre em uma pequena versão do Purgatório dantesco, havia decidido seu destino: Leopoldo Gonçalves, ou Honesto Iago, seu codinome entre as chinas carinhosas dos baixios, tornar-se-ia o maior crítico do Império. Mais tarde, ao apresentar-se como voluntário para o editor e único funcionário do jornal A Feira, pasquim publicado sem a devida regularidade naquela Província de São Pedro, impressionou-o pela convicção e fluência.

Honesto Iago começava a esboçar-se em traços autóctones e tomava forma e espírito para nunca mais dissociar-se de Leopoldo ou de seus contemporâneos, a história e a vida daqueles dias tinham agora um observador atento e um apreciador implacável. "Um esteta", diriam alguns; "farsa completa", acusariam outros poucos. O certo é que sua fama começaria já no primeiro texto, despretensioso comentário de vinte e poucas linhas inserido por engano na capa do jornal, na edição semanal de terça-feira, 15 de janeiro de 1852.

Apesar de tudo, o título não deixava dúvidas e avisava aos incautos: "O rei estava nu". Por inocência ou simplicidade, Leopoldo conheceria já na estréia o sabor agridoce da polêmica. O texto, escrito na véspera, em horas de insônia pela responsabilidade assumida sem o respaldo da experiência, começava assim: "Flanávamos pela rua da Praia na tarde de sábado quando nos deparamos com uma das donzelas mais formosas desta capital. Seu porte altivo e as olheiras profundas sulcadas no rosto alvo nos remetiam a Dame aux Camélias de Dumas Filho, cujo romance hoje faz furor, vertido ao palco cênico parisiense. Pois essa versão subtropical da hetaira do Boulevard de Saint Honoré nos olhou com grande enlevo, como a desnudar-nos com a paixão romântica mais desenfreada. "O senhor doutorzinho poderia iniciar finalmente os folhetins que prometeu", ordenou-nos a Duplessis guasca. Eis que nos sentimos como a majestade imperial subitamente nua em pleno boulevard, para a diversão da plebe. Como conseguiríamos tratar de assunto tão leve, tão sedutor como o olhar da moça, sem incorrer no pior dos pecados, o da acídia, que assalta a todos que se devotam à prática do folhetim teatral? A moça pressurosa como que nos suplicava a ação imediata. E como não se deve negar nada ao adorável sexo, prontamente vi-me no imperativo categórico de assumir a férula do censor tanto do teatro lírico e dramático como do circo e suas infinitas ramificações: cavalinhos, pulgas, clowns e, por que não?, dramalhões de casaca e os bailes de quadrilha que continuam a aformosear a mocidade dos pagos. Queremos, portanto, comunicar ao Respeitável Leitor de A Feira que assinaremos o canhenho do folhetim teatral, a ser estampado no rodapé do nosso semanário, que sai sempre às terças-feiras. Julgo-me pressionado e pouco preparado para o ofício. No entanto, não me recusarei a assumir a tarefa. Nossa bela cidade já possui recreio e charivari suficientes para preencher o espaço dos folhetins e deleitar a leitora da cidade e dos campos. Ensaiaremos fornecer motivo para o convívio social das donzelas e damas provincianas, bem como aos farroupilhas arrependidos que se espalham por este verdadeiro Continente de São Pedro adentro. O rei está nu, mas promete ir à ópera sem perder a majestade! Honesto Iago".

Destarte, o engano revelou-se fundador para a carreira nascente do folhetinista. Era questão de esperar a oportunidade para deitar tinta e imaginação. A cândida Porto Alegre, de fato, quase não possuía espetáculos suficientes para tal empreitada. Viu-se assim o nosso Honesto Iago na embaraçosa situação de precisar inventar bailes, óperas, mágicas e dramas,preenchendo o espaço do rodapé e o topo das cabecinhas mais imaginosas da urbe.

Para Leopoldo, o embaraço afigurava-se como oportunidade de ouro. Comporia nas páginas de jornal a vida artística que não existia em torno de si. Noticiaria eventos invisíveis, jamais pensados pela mente humana, causaria frisson nos leões e donzelas de toda a Província, até porque A Feira circulava em rincões mais remotos, como Jaguarão, Pelotas e São Borja – e chegava sob a espécie de correspondência num jornal cortesão de prestígio como O Guasca na Corte.

O intrépido Leopoldo embarafustou pela casa dos pais, não deu atenção à mãe, dona Adelaide, e à irmã mais velha, Carolina Leopoldina, e enxaviou-se no quarto. Febril, apanhou pena e papel, debruçou-se na escrivaninha alta (gostava de escrever de pé, como Alfred de Musset) e respirou fundo, como a evocar os trinados das divas, os saltos dos insetos, o torvelinho dos cavalos brancos em tropel. Iria recriar o mundo. E ele estava repleto de bosta.

(Continua)

*Jornalista, atuante em São Paulo desde 1982. Autor de sete livros, entre romances, ensaios e contos, sendo cinco já publicados e mais dois no prelo. Prepara, para breve, mais um lançamento: “Ópera Nacional, um sonho em vernáculo” (ensaio da história cultural).

Nenhum comentário:

Postar um comentário