domingo, 22 de novembro de 2009




Mãe solteira

* Por Juarez José Viaro

A vida começa às cinco horas para Maria das Graças. Dali a pouco já está chacoalhando dentro do ônibus de Taboão da Serra, para ir até a casa da patroa do dia. A roupa do corpo já está toda suada com o vai-e-vem de passageiros que passam se esfregando, se roçando, alguns com segundas intenções, ela sabe, e muitas vezes é obrigada a dar algumas cotoveladas em um mais saidinho.

A vida passa pela janela do ônibus num torpor cotidiano. Lojas de eletrodomésticos, oficinas de carros velhos, lotéricas, bares com pedreiros sonolentos, tomando o café da manhã ou bebendo a primeira cachaça do dia. O calor aumenta e o empurra-empurra vem junto com ele. A cada ponto de ônibus sobe mais gente, poucas descem.

A vida é assim mesmo. Acordar, tomar banho correndo, acordar a filha, engolir o café que a irmã prepara, pegar a bolsa com uma roupa velha de trabalho para vestir na casa da patroa e sair apressada para pegar o primeiro ônibus, antes que tenha que esperar o próximo e chegar atrasada.

Nos prédios, a rotina é a mesma. Pedir a chave na portaria ou pedir para interfonar ao apartamento da patroa. As patroas mais recentes pedem para chamar, pois ainda não têm confiança para deixar a chave na portaria. Tanto faz, prefere assim a ter que pedir a chave ao porteiro e ainda ter que ouvir algum comentário ou gracejo na hora de entregar e devolver a chave. Não acorda com humor para ouvir isso.

Abre a porta de serviço e entra. Cumprimenta a patroa, atordoada em levar os filhos à escola, despedir-se do marido e ainda preparar-se para trabalhar também. Retira a roupa para lavar do cesto, bota na máquina, enquanto isso procura a roupa já lavada e monta a tábua de passar roupa. O cachorro late ao reconhecê-la. Ela tenta um afago, mas ele, cauteloso, se afasta. Talvez se recorde de outras que o maltrataram.

O rádio ficou ligado numa emissora qualquer, ela desliga, não gosta de trabalhar com barulho. Prefere assim, sozinha naquele apartamento, fazendo suas tarefas, dona absoluta daquele silêncio só quebrado pelo tic-tac do relógio na parede e pelo roçar do ferro quente sobre o tecido da roupa. Só então pode ficar consigo mesma, pensar na vida, lembrar-se da filha, das reclamações da professora quando a menina não vai bem, ou apronta alguma com as colegas de classe. Pela terceira vez foi chamada na reunião dos pais e mestres para reclamarem da falta de atenção da menina. Não sabe mais o que fazer. Se pelo menos tivesse um marido, ele ajudaria a cuidar dela, trabalharia para pôr mais dinheiro em casa e talvez até alugar uma, para não ter que morar e depender da irmã e do cunhado.

Mas quis Deus que a vida que fosse assim, mãe solteira, cuidar da filha e ainda ganhar a vida. Ainda bem que teve ajuda da irmã, que cuida da menina enquanto ela trabalha. Ainda bem que se entende com o cunhado, e ajuda um pouco na casa. Ainda bem que Deus ajudou.

A vida não é de todo ruim, consegue ganhar para seu sustento e da filha, pagar as contas, comprar material escolar, cada dia mais caro. Vez ou outra uma patroa ajuda com alguma roupinha que não serve mais pra filha, ou um sapato que já está fora de moda e gasto.

Só falta aquilo. Agüenta todas as dificuldades do trabalho, os ônibus lotados, trabalha até quando está doente, fica meses esperando uma consulta num médico, quando perde um dia de trabalho e a diária, tudo. Não se incomodaria com nada disso, viveria feliz, seria alguém alegre, que acorda contente em trabalhar, que ouve gracinhas nos ônibus e na frente das construções, tudo. Faria tudo por prazer, não se incomodaria com as patroas mais exigentes, reclamando de roupa mal lavada, insinuando que uma roupa do filho sumiu, que está gastando muito sabão em pó, não, não se incomodaria. Não reclamaria ao chegar em casa e ainda ter que lavar a própria roupa e da filha, ajudá-la nas tarefas da escola, mesmo sabendo menos que ela, nem ouvir o cunhado reclamando da falta de serviço na oficina, dos impostos cada vez maiores. Não reclamaria de passar o aniversário em branco, sem festas, sem presentes, apenas o abraço da irmã, o aperto de mão do cunhado. Não reclamaria de nada.

Só falta mesmo aquele abraço, daquela menina que viu crescer em seu ventre e nascer, que deu tanto carinho, mas que logo teve que deixar aos cuidados da irmã para poder trabalhar, ganhar a própria vida, depois de abandonada pelo pai da criança.

Só falta que a filha a chame de mãe.

* Juarez José Viaro é formado em Letras e Jornalismo. Publicou o livro de poemas “Aroma de Amora” e participou de movimentos literários em Osasco e São Paulo. Tem um romance inédito, “Viagem ao Interior”.

2 comentários:

  1. Belo texto Juarez, há tantas Marias das Graças nesse país, que elas se confundem com a sua "Maria da Graça"...
    beijos

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  2. Juarez

    Que bom tê-lo de volta aqui no blog. Já estava com saudade dos seus textos.E que bela historia esta da Maria das Graças. Quantas há por este mundo afora levando esta vida...
    Beijos
    Riso

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