sexta-feira, 20 de novembro de 2009




Fórmulas do Amor

* Por Urariano Mota

A notícia correu a internet na sexta-feira 13. A partir da BBC, de Londres, anunciava-se que “Laboratório do Amor prevê duração de casamento”. Ainda que estejamos vacinados contra as fraudes, contra o sensacionalismo, contra os enganos a que somos levados pela grande imprensa, ainda assim, como bons curiosos, crédulos, não pudemos deixar de cair na vala dessa notícia. Porque vejam que o indivíduo que dá título a um artigo destes é um satanás muito ardiloso. Que o amor seja objeto de estudo científico já é em si um assunto muito interessante. E se, além disto, um diabinho nos sopra aos ouvidos que exista um “laboratório”, um lugar de experiências e experimentos, para o Amor, e que não é um cenário pornográfico, e se, por cima desse feitiço, ainda nos insinua que em tais experiências se prevê a duração de um casamento ... cara, bem que poderíamos avançar os olhos por esse tapete voador. Fomos, entramos. Acompanhem-nos.

“Cientistas do Instituto de Pesquisas de Relacionamento, apelidado de ‘Laboratório do Amor’, dizem ter criado um modelo matemático que pode prever quais relacionamentos terminarão em divórcio. O psicólogo John Gottman e os matemáticos James Murray e Kistin Swanson alegam que suas previsões têm 94% de precisão...”. Cara, 94% de acerto sobre o futuro de um casamento deixou de ser probabilidade – é destino garantido. Tudo que os espíritas nos insistem em cantar e contar, tudo que os pais-de-santo, ciganas, bruxas nos dizem, nos falam, e nos perturba, é tudo verdade. Esses cientistas são os novos alquimistas: conseguiram transformar a bola de cristal em objeto da mais pura ciência. Vejam, e sintam que não exagero: PREVISÕES COM 94% DE PRECISÃO. Podemos até dizer que 6% aí são uns casos muito rebeldes, que só existem para contrariar a Lei de Gravidade. Ou como diriam os sábios num paper: 6% são os mártires da lei geral que existe em toda ciência. Mas continuemos, porque 94% são só o resultado. Para tal wonderful existe um método:

“Os casais submetidos ao teste devem primeiro preencher um questionário para identificar seus tipos de personalidade. Eles então são ligados a um equipamento para monitorar respostas físicas e emocionais durante uma discussão sobre assunto controverso, como dinheiro, por exemplo..”. Até aí, além do fato material, básico, de que casais extremamente amorosos, espirituais, perdem a alma e o romantismo quando divergem sobre dinheiro, até aí, nada demais. Mas continuemos. “O modelo (de previsão? ) foi desenvolvido com o uso de dados coletados de conversas filmadas entre casais. Dados psicológicos, como medição de pulsação, também foram coletados e analisados...”. Esqueçamos que medidas de pulsação se tornaram dados psicológicos – há, ou haveria, uma pulsação de medo, de angústia, de raiva, ou de felicidade? Admitamos que sim, mas como tais pulsações qualitativamente (psicologicamente) distintas se refletem em números? Mas quem somos nós diante de tais alquimistas, queremos dizer, cientistas? Continuemos.

“Segundo os pesquisadores, as conversas refletem problemas fundamentais de um casal...” . Não seria mais próprio medir-se o silêncio? Digo, se me entendem sem metáfora, medir as horas em que os casais em um mesmo ambiente não se falam? Pois bem. ”... Segundo Gottman, antes desse modelo, previsões de divórcio não eram precisas. ‘E nós não tínhamos idéia de como analisar os casamentos de longa duração e os casais que se divorciavam’ “. E agora? Atenção, ciência, alô, alô alquimia:

“O segredo foi quantificar a proporção de interações positivas e negativas durante as conversas. ...” Parágrafo, um longo branco de parágrafo aqui mereceria. Porque interações positivas e negativas não são tão claras quanto o vermelho e o negro. E muito menos o seu valor, de carga de sentimento e de paixão. O que dizer, por exemplo, de dez pulsações de amor, contra uma só e somente uma de destruição? Como prever, por exemplo, o destino do casamento de Otelo e Desdêmona? Mas não atrapalhemos a ciência, porque

“A proporção mágica é de cinco para um, respectivamente...” cinco positivas contra uma negativa, “... e um casamento corre o risco de não dar certo se a proporção for menor que isso”. Em lugar de proporção mágica, não seria melhor dizer, porção mágica? Assim ficaríamos melhor harmonizados, no entendimento, na sensibilidade, e, quem sabe, no casamento. Mas não interrompamos os cientistas-cupidos: “O que estamos tentando fazer é realmente entender como funcionam as relações amorosas. E assim poderemos ajudar as pessoas a construir seus romances e paixões”.

Terrível, não? Em uma espiral crescente de ridículo, essa pesquisa foi apresentada no encontro anual da Associação Americana para Avanços Científicos, em Seattle, a BBC e outras fontes mais austeras espalharam-na pelo mundo, e cá estamos nós a comentá-la neste artigo! A única coisa que nos redime é voltar para a nossa insignificância, deixando para os leitores uma invenção do humorista Millôr Fernandes, que criou esta expressão do amor em números:

Poesia Matemática

Às folhas tantas
do livro matemático
um Quociente apaixonou-se
um dia
doidamente
por uma Incógnita.

Olhou-a com seu olhar inumerável
e viu-a, do Ápice à Base,
uma figura ímpar:
olhos rombóides, boca trapezóide,
corpo octogonal, seios esferóides.

Fez da sua uma vida
paralela à dela
até que se encontraram
no infinito.

"Quem és tu?", indagou ele
em ânsia radical.
"Sou a soma do quadrado dos catetos.
Mas pode me chamar de Hipotenusa.

" E de falarem descobriram que eram
(o que em aritmética corresponde
a almas irmãs)
primos entre si.
E assim se amaram
ao quadrado da velocidade da luz
numa sexta potenciação
traçando
ao sabor do momento
e da paixão
retas, curvas, círculos e linhas sinoidais
nos jardins da quarta dimensão.

Escandalizaram os ortodoxos das fórmulas euclidianas
e os exegetas do Universo Finito.
Romperam convenções newtonianas e pitagóricas.
E enfim resolveram se casar,
constituir um lar,
mais que um lar,
um perpendicular.

Convidaram para padrinhos
o Poliedro e a Bissetriz.
E fizeram planos, equações e diagramas para o futuro
sonhando com uma felicidade
Integral e diferencial.

E se casaram e tiveram uma secante e três cones
muito engraçadinhos.
E foram felizes até aquele dia
em que tudo vira afinal
monotonia. Foi então que surgiu
O Máximo Divisor Comum
Freqüentador de círculos concêntricos,viciosos.
Ofereceu-lhe, a ela,
uma grandeza absoluta
e reduziu-a a um denominador comum.
Ele, Quociente, percebeu
que com ela não formava mais um todo,
uma unidade.
Era o triângulo,
Tanto chamado amoroso.
Desse problema ela era uma fração,
a mais ordinária.
Mas foi então que Einstein descobriu a Relatividade
e tudo que era espúrio passou a ser
moralidade como aliás em qualquer
sociedade.


* Jornalista e escritor

4 comentários:

  1. Um manual para o amor! A que ponto chegou a incompetência humana! Ótima crítica, Urariano! E de quebra o poema genial do Millôr. Parabéns.

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  2. “O segredo foi quantificar a proporção de interações positivas e negativas durante as conversas. ...”


    Como diria uma grande amiga "cago baldes" para a pesquisa científica...casamento é um tiro no escuro, não existe manual de instrução, não há bulas...
    Concordo contigo quando diz que o silêncio é bem mais revelador do qualquer palavra.
    Adorei seu texto.
    beijos

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  3. Não conhecia o seu lado humorístico Urariano. Tão bom quanto o outro.

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  4. Daniel, Núbia e Mara, grato pelos comentários bondosos de vocês. Mas eu me sinto aqui como o sujeito que carregava imagens de santos em um burrinho pelos sertões nordestinos. As pessoas reverenciavam o santo e o bobo pensava que era pra ele. Aqui, reverenciam o santo Millôr e o portador fica todo ancho.
    Abraços.

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