segunda-feira, 30 de novembro de 2009




Aprender a caminhar, e desta vez ao ar livre

* Por Mara Narciso

O trio de homens vem em minha direção. O rapaz, de uns vinte anos, se tanto, está na cadeira de rodas. Outro rapaz, um pouco mais velho do que o primeiro, está logo atrás. Quem empurra a cadeira é um homem de uns 50 anos. Todos os três têm a pele morena e estão suados pelo esforço e pelo sol forte, de nove da manhã. Estão na avenida próxima ao Parque Guimarães Rosa. Ao lado da pista, as árvores estão protegidas pela grade verde, que forma uma cerca alta. Em poucos anos, longe das agressões humanas, a vegetação modifica-se, os arbustos crescem, tornam-se árvores, e o mato cumpre o seu papel de multiplicar-se e transformar o aglomerado de vegetais num bosque urbano.

A primeira vez que vi os três homens não entendi o que se passava. Mesmo assim, já percebo que o homem mais velho demonstra cuidado com o rapaz. O cansaço de ambos é visível, mas os olhos do mais velho são de esperança e coragem. Durante a minha caminhada matinal, o ritual do encontro com os três torna-se uma expectativa. De longe, mal os avisto, procuro prestar atenção nos gestos e ações de cada um. Eu passo por eles depois da metade do caminho, ou seja, a segunda metade da trilha percorrida. Só então vim a entender o trabalho que faziam.

Os homens passam por mim sempre da mesma maneira: o mais velho empurrando a cadeira, um dos rapazes sentado nela e o outro caminhando ao lado. Dia após dia, os vejo passando por mim, indo para os exercícios matinais. Compreendi se tratar de funcionário, pai e filho, na difícil busca de voltar a caminhar.

Num dia, a surpresa: o rapaz da cadeira está de pé, amparado pelo homem. Penso na origem do problema. Teria sido um acidente? Ou ainda uma doença? Não há por que perguntar, apenas admirar a convicção e o empenho daquele pai, a força que mostra em cada gesto, em cada momento da jornada. A expressão feliz que manifesta, emociona. E ainda, o jeito comprometido do rapaz, consciente da sua melhora, que, dentro da sua exaustão, esboça um sorriso de vitória.

A manhã chega e os três já saem andando. Após parte do percurso, o rapaz em recuperação, extenuado pelo esforço, pede para se sentar, e termina de chegar em casa na cadeira, após atravessar parte do bairro. No começo não, mas logo a melhora motora é perceptível, pois, após metade do caminho, ainda o pego de pé, deslocando-se quase sem o amparo do pai.

A cada dia vejo o rapaz rompendo maior pedaço da avenida. Lá vem ele, alto, magro, encostado ao pai, que é um palmo menor que ele. Não só os braços, mas também os seus olhos buscam segurar-se no incentivo desse pai devoto, e assim, executa cada passo. Vou acompanhando o seu progresso, e a força desse homem, que se segura nele, e o motiva, enquanto o técnico em enfermagem empurra a cadeira vazia, bem próxima, por medida de segurança.

O filho passa o braço por sobre o ombro paterno, e num esforço, a cada dia menor, caminha pela avenida com seu fiel protetor. Torço por eles, principalmente quando vejo a energia prestes a esgotar-se, pois algumas vezes o rapaz manifesta desequilíbrio. Tudo chama a atenção nessas pessoas, especialmente o empenho do pai, estampado em cada gesto de fé, que ele não consegue esconder. Dá para notar a vibração dele, ao passar. Parece dizer: “meu filho está andando!” Olho em seus olhos, quando cruza por mim, e até parece completar: “logo meu filho fará o percurso sem ajuda”. Vejo que já está acontecendo.

As sequelas neurológicas podem não ser poucas, e a barreira maior somos nós mesmos quem a colocamos. Quando a meta é baixa, ficamos em níveis inferiores, quando o alvo está acima, voos altos alçamos.

* Médica, acadêmica do sétimo período de Jornalismo e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”.

5 comentários:

  1. E quando a gente pode usufruir de um ombro amigo
    as coisas podem ser mais toleráveis...e até milagrosas...
    Beijos Mara

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  2. As grandes batalhas, aquelas verdadeiramente heróicas, vencemos na intimidade e no anonimato.

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  3. Mara,
    um texto cheio de fé e esperança.
    Tenho certeza que o rapaz vai conseguir caminhar sem ajuda. Acreditar é fundamental. Ter alguém que acredite em nós , também. Uma prova de firmeza e amadurecimento. Torcendo pelo rapaz !

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  4. Obrigada Núbia, Daniel e Celamar!
    A obstinação desse pai, que não muda de cara por meses, e não falha uma só vez, contagia. Mas nem todos que passam os enxergam, já que os pobres têm uma boa dose de invisibilidade.

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  5. Mais uma dose de medicina filosófica. Ou de filosofia média.
    Que não nos faltem estas pílulas às segundas. Um beijo e parabéns.

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