terça-feira, 20 de outubro de 2009




Viagem através do espelho

* Por Risomar Fasanaro

São cinco mulheres. No início eram quatro, mas agora dona Lília, a mãe de Suely, se juntou ao grupo e vem a todos os encontros. Reúnem-se algumas vezes por ano. Sempre que uma delas aniversaria, quando alguma enfrenta um momento difícil, ou apenas para conversar, contar as novidades.

As quatro tinham estudado na mesma escola, e tinham se tornado amigas. Amigas de verdade. Dessas que adivinham o que as outras gostam, mesmo que nunca tenham falado sobre aquilo.

Mítico e Aurea usam roupas clássicas, sóbrias, Suely é muito elegante, mas suas roupas sempre têm um toque de originalidade, e Francisca gosta de roupas indianas, quase hippies. Dona Lilia é discreta, e muito elegante.

Era um sábado de sol, e o motivo do encontro era o de simplesmente matar a saudade. Conversavam sobre os filhos, os livros que estavam lendo, os filmes a que tinham assistido.

Naquela tarde mesmo depois de ter almoçado, relutavam em ir embora. Era preciso esticar aquele encontro, por isso inventavam assuntos. Por que não ir ao shopping Higienópolis tomar um sorvete?

Antes, ficaram andando, olhando as vitrines, e Francisca, mesmo de longe, se encantou com uma saia de estampas miúdas em preto e branco, toda cheia de pontas e que era realmente de arrasar. Mas já prevendo o preço, sugeriu às amigas: “vamos ver de perto. Quem sabe ela não é tão bonita, e me consolo...”

Mas aí é que foi o erro: também as mariposas caem nessa armadilha e por isso queimam as asas. De perto a saia era mais linda ainda. O preço, contudo, a tornava inacessível.

Saíram dali, andaram, viram muitas outras vitrines, mas se percebia que Francisca estava longe.

Entraram em uma confeitaria e tomaram sorvete. Já estavam indo embora, quando ela comentou, referindo-se à saia: “isso é como paixão: cega, enlouquece”. As outras concordaram: a saia era irresistível.

“Será que os homens sentem isso diante de alguma roupa? Acredito que não. Mesmo porque as roupas deles apresentam tão poucas variedades...”, disse uma delas.

Tudo teria terminado ali, se Francisca não sugerisse: “que tal se a gente der mais uma espiada na saia?” As outras concordaram e foram. Diante daquela vitrine, as amigas não viram mais a Francisca adulta, mas sim uma garotinha diante de uma vitrine de bonecas...

Foi quando as amigas a arrastaram para dentro da loja: experimenta a saia. Se gostar você leva. Você merece. Ela é sua cara, foi feita pra você.
-Experimenta a saia, Francisca!
-Não, não vou experimentar... Jamais usaria uma roupa tão cara...
-Experimenta, quem sabe vestindo-a você não gosta, e nós vamos embora...
-Está bem, vou vestir.

Constrangida ela entrou na cabine do vestuário e vestiu a saia.

Tal qual Alice, quando se olhou mergulhou no espelho e se viu em uma estreita rua de Toledo, com um grupo de mulheres dançando ao som de castanholas. A saia se ajustava aos quadris e com os passos da dança, pouco a pouco se abria em leque. Depois, os sons das castanholas a levaram para uma tela de Goya.

É estranho como uma simples roupa é capaz de evocar lembranças daquilo que não se viveu, ou daquilo que se desejaria viver.

Mas foi aí que sua alma achou de dar palpites. Afinal, alma não entende nada de vaidade feminina, muito pelo contrario: “você vai vestir uma saia cara dessas quando tanta gente anda esfarrapada, não tem nem o que comer???”

Sua cabeça se viu invadida por imagens de crianças pedindo esmolas, desmoronamentos de casas de vítimas das enchentes. Sentiu que tudo rodava, e precisou se apoiar na parede da cabine. Um embrulho no estômago a fez correr ao banheiro e por pouco não sujou a saia. Lavou o rosto e mirou-se no pequeno espelho da pia: já não se via de corpo inteiro, a saia já não a dominava. Foi como se de repente tivesse voltado à realidade. O que estava fazendo ali?

As amigas chamavam-na:
-Vestiu? Ficou boa?
-Esperem um pouco, eu estou vendo.

Deu um tempo, e quando já não dava para perceber o transtorno que aquela saia lhe provocara, saiu da cabine.

Do lado de fora as amigas a esperavam
- Cadê a saia, Francisca? Por que você não nos mostrou, pra ver como ficou em você?
- É que não gostei. Não ficou bem em mim...
- Duvido! Uma saia dessas fica bem em qualquer pessoa, disse uma delas.
- É...Mas em mim não ficou.
- Puxa, a gente estava combinando de te dar ela de presente.
- Obrigada, meninas, o que vale é a intenção. A saia é muito bonita, mas não me ajeitei com ela. Ficou tão esquisita, que eu não iria usá-la nunca.

Saíram da loja e ela sentiu que voltara. Sentiu que uma viagem no espelho não a levaria a ser diferente do que era. Não, seu nome era Francisca.

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.

3 comentários:

  1. Como é bom e saudável escapulir de vez em quando, sair fora da mesmice, experimentar novos estados, desprezar a rotina, esconder-se dos previsíveis! Como é bom não ter celular e, assim, não ser encontrado! Como é bom experimentar ser outra pessoa para entender melhor essa outra pessoa! O problema é que há câmeras demais por aí, um veto geral à privacidade, uma obrigatoriedade autoritária de dar sempre satisfações ao Estado. Que as amigas continuem fazendo sempre suas viagens. Parabéns, Ris!

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  2. Obrigada, Daniel. Você vê como é fácil "viajar"? Basta uma roupa diferente e lá se vai a gente pelos ares. Às vezes, até sem espelho,dou uma de Francisca, e viajo a muitas terras distantes...
    Beijo
    Ris

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  3. Ahhhhhhhhh que pena que Francisca não comprou a saia !
    Resistiu a tentação .
    Mas achei ótimo o passeio que ela deu com as amigas. Faz bem para o corpo e a alma.

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