quarta-feira, 30 de setembro de 2009




“Viagem ao crepúsculo”?

* Por Marco Albertim

Título inadequado para uma república ainda nascente, sobretudo para quem confessa não compreender a peculiar democracia cubana. “Durante mais de 50 minutos, falou sobre os delegados do bairro, que são eleitos, depois fazem parte de uma região, por fim o distrito, que depois elegem outros representantes, numa cascata de pessoas e processos que haviam me explicado anteriormente, mas que jamais entendi.”

Está no livro de Samarone Lima, sobre sua viagem a Cuba. Ressalta em suas impressões – são impressões – o depoimento informal de quem o abrigou na ilha. Primeiro um casal de homossexuais avesso à revolução, hospedando turistas para obter dólares. Depois “Celeste”, popular, perfil simpático, sobrevivendo da venda de alimentos no “mercado negro”, desviados de escolas e hospitais.

O autor pilhou-se por suas próprias limitações ao se fiar nas deduções de quem nunca compreendera o propósito de preservação da revolução, no país objeto da hostilidade, do cerco de potências estrangeiras sob o comando dos Estados Unidos. Depois, não fossem sua experiência e a preocupação em poupar dinheiro para cobrir um mês de estada – não de “estadia”-, deixar-se-ia pilhar na pecúnia por “Paco e Jaime”.

Teve a chance de compreender o que ouviu de depoimentos contrários ao governo cubano, porquanto “(...) há uma diferença tão grande entre o que ganham por mês e o que os turistas gastam em um simples jantar, que ter alguém do exterior por perto representa a possibilidade de conseguir alguma vantagem.” Sim...! Há diferenças de classes no socialismo! Revolucionários ingênuos ignoram isso. Há pobreza na ilha, bolsões de insatisfação, tédio em setores esclarecidos e sobretudo no segmento atrasado da população, com traços de lúmpen. Em 50 anos de revolução... Em 50 anos de cerco econômico.

Samarone deu as costas aos sindicatos, à Juventude Comunista, às assembleias de escolha de representantes, ouviu um lado, rendeu-se ao tédio: “Segui por várias ruas, até chegar ao Parque Central, um espaço bem cuidado, com a estátua de José Martí ao centro, apontando para um lugar indefinido, como se mostrasse o futuro aos cubanos.” Samarone Lima está no limite entre o observador desatento e a direita que sabe usar a mira, posto que “a impressão é de que os Estados Unidos não fazem outra coisa, a não ser maquinar a derrocada do regime comunista liderado por Fidel.” Ainda tem dúvidas, caro escriba? Não precisa ser “um bom quadro do PSTU” para saber disso.

Ouviu “Javier”, funcionário de um ministério, “mais defensor da revolução que sua esposa.” O homem citou conquistas na Saúde, Educação, média de vida, redução de crianças mortas em cada mil nascidas. “Descobri uma malandragem nessa hora. – diz o unilateral jornalista – Ele falava sem pausa, sem olhar para a esposa, para ela não entrar, e interromper seu raciocínio.” Porque “Javier detestava ser interrompido, coisa que Diana fazia com insistência.” Que há de mal na particularidade do casal? Descobriu mais, Samarone; viu em “Ernesto (...) uma eterna propaganda revolucionária (...) Era um obcecado pela revolução (...)” Graças a “Ernesto” a revolução cubana sobrevive... Com tamanha limitação, não distinguiu a convocação de unidade em cartaz público, de autoria de Fidel Castro: Que somos e que seremos, senão uma só história, uma só ideia, uma só vontade, por todos os tempos?

“Se tanta gente está descontente – pergunta-se – (...) por que não há revoltas, passeatas, manifestações?” A dúvida poderia tirar a angústia do jornalista. Nenhum governo contrário ao povo se mantém por mais de 50 anos; é anticientífico admitir. Encontrou explicação nos Comitês de Defensa de la Revolución. “Não entendi por que tantos comitês, se a revolução já é uma senhora de quase 50 anos.” Samarone se fez a pergunta a 90 milhas de Miami.

Reclama ainda do Granma, com discursos inteiros de Castro, fotos, das edições dedicadas a Hugo Chávez. Queria o quê!? Elogios a Bush? Ou, amesquinhando as edições, manchetes destilando sangue, dos crimes cometidos no Cerro, bairro violento de Havana? Em Recife, no Rio de Janeiro, há jornais que sobrevivem de shows em letras garrafais. Pero en la isla socialista!?

Samarone Lima tem boa prosa, solta. Há trechos que lembram o gênero conto, como na nota de número 9, primeira parte do livro, descrevendo a discussão passional entre “Paco e Jaime”. Sem apelos nem preconceitos. No entanto, onde achou necessário, em vez de chamar as pessoas pelo nome real, optou por batizá-las conforme a impressão que lhe passaram. Assim, conhecemos “Apressadinho”, “Bonachão”, “Camundongo”, “Médio-ligeiro”. Ao todo, 16 caracterizações artificiais. A pior de todas é “Punheteiro”, “Um gordinho de gravata” falando na TV sobre “O império e a ilha independente”. Tivesse lhes dado o nome verdadeiro, a prosa teria ganho plasticidade. Em que pese ser um livro de fácil leitura.

* Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

Um comentário:

  1. Maravilha de texto, Marco. Preciso nos dois sentidos. Obrigada pela clareza.
    Abraços

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