terça-feira, 18 de agosto de 2009




A Missão de Santo Ângelo

* Por Risomar Fasanaro

A viagem prossegue e procuro registrar a paisagem tão diferente de todas as outras cidades onde estive. Apaixonada que sou pelo norte e nordeste do país, tenho de me render: a região Sul me deslumbra. As araucárias, árvores que tanto admiro, e que são tão raras em São Paulo ladeiam a estrada com tanta naturalidade como se elas estivessem em casa

Aqui e acolá um rio, uma casa típica da região, rebanhos, a torre de alguma igreja e inúmeros silos que armazenam os cereais produzidos na região.

Faço força para fotografar na alma aquelas paisagens, pois não sei se poderei um dia voltar, e tenho receio de que daqui a alguns anos, com a fome do progresso, elas sejam engolidas.

Antes de chegar à próxima Missão, visitamos a Vinícola Fin instalada em meio a muitas árvores, flores e folhagens. O atual proprietário nos conta que o bisavô veio de Vêneto e ali se instalou. A Vinícola existe há seis anos e toda a produção de vinhos é artesanal.

A colheita só acontece em janeiro, por isso não vimos a plantação de uvas; já que não é uma época interessante para se ver os parreirais.

Depois da degustação de alguns exemplares de vinho, almoçamos na própria vinícola e seguimos para Santo Ângelo, para visitar outra missão.

Cidade que jamais pensei visitar, aquela tem a ver com minha história. Quando meu pai, então no exército, foi promovido a primeiro tenente, sua transferência foi para lá, mas quando recebeu a notícia, minha mãe entrou em desespero. Acostumada ao calor do Recife, não queria de jeito algum viver no sul. Disse isso ao meu pai que ficaria conosco em Pernambuco e ele iria sozinho para o RS, até obter outra transferência e voltar. Mas meu pai conseguiu que um dos colegas trocasse com ele. O amigo foi para Santo Ângelo e nós viemos para São Paulo.

Descemos na praça Pinheiro Machado, toda circundada por anjos. Alguns gaúchos passavam com seus trajes típicos, e em frente, a catedral angelopolitana, onde antes existiu a missão de Santo Ângelo Custodio. Considerada uma das mais ricas de todas as missões, ela foi, em 1646, a última redução a ser fundada, e a ela se deve o nome da cidade.

Achei tudo tão bonito, que lamentei não termos ido para aquela cidade onde, entre outras coisas, teria, quem sabe, tido oportunidade de conviver com os guarani. Mas foi uma primeira impressão, depois, ao saber o que se fez com um painel da igreja, dei razão a minha mãe. Logo direi por quê.

A catedral Angelopolitana foi erguida com material das ruínas, e se encontra no mesmo local onde estava instalada a redução. A construção abrangeu o período de 1929 até os anos 50. De 1950 a 1958 construiu-se a fachada do templo e seu traçado segue os mesmos moldes da missão de São Miguel Arcanjo.

No pórtico da catedral, sete imagens em pedra grés do escultor Valentin Von Adamovich, representam os 7 santos padroeiros das missões: São Borja, São Nicolau, São Luis Gonzaga, São João Batista, São Lourenço Mártir, São Miguel Arcanjo e Santo Ângelo Custodio. No interior nos chama a atenção o anjo esculpido por Godofredo Thaler, e a imagem do Cristo morto, esculpida por guaranis em 1740. Uma peça muito expressiva do barroco missioneiro.

Ao lado da catedral se encontra o museu onde podemos ver um pequeno acervo do que se conseguiu preservar da população que ali viveu.

Ao contrario das outras igrejas missioneiras que tinham suas frontes voltadas para o norte, para evitar o vento minuano, a de Santo Ângelo é voltada para o sul, e segundo os estudiosos, a explicação talvez esteja em ter sido ela a última a ser construída. Seria uma forma de fechar um círculo.

Mas o que mais do que atenção, me provocou grande revolta, na historia daquela catedral, foi saber que Tadeu Martins, artista plástico, pintou um painel com jesuítas e índios guarani seminus, para rememorar o que foi o processo de catequização naquele local, mas a pintura provocou muitos protestos entre os freqüentadores, porque os índios estão seminus. A reação dos fieis foi tão grande que o painel passou a ficar coberto com uma cortina durante as cerimônias de batizados e casamentos.

Tão grande foi o poder repressor da sociedade conservadora de Santo Ângelo, que após a reforma da igreja, quando foi reaberta ao público, no dia 2 de outubro de 2008, o belíssimo painel já não fazia parte da catedral. Fato que demonstra o preconceito e a injustiça contra a nação indígena a qual tanto deve aquela população, tanto pelo que sofreu, como pelos valores que deixou. Embora dessa vez tenha sido em forma de arte, mais uma vez a nação guarani foi expulsa daquele local.

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.

4 comentários:

  1. É, cara Ris, o preconceito contra o índio é fato desde sempre. Fala-se muito de excluídos hoje em dia e, ainda assim, raro se menciona o índio. No entanto, foi ele o primeiro brasileiro. Bela crônica. Parabéns.

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  2. Obrigada Daniel, por suas palavras sempre tão generosas.Este painel como pode ver pela foto, não é, de forma alguma, imoral.
    Beijos
    Risomar

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  3. Não é por acaso que a ignorância - em seu sentido mais amplo - alimenta a autofagia. Quantas vezes nosso país e nossas cidades já se devoraram?

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  4. Pois é, Murta...Não temos a conta.
    Obrigada!

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