quarta-feira, 17 de junho de 2009




Partidos

* Por Clara dos Anjos

Ele se foi. Nesta noite ele se foi. Com armas e bagagens. Sem dizer palavra. Sem lutar, sem relutar. Ela chamou. Ele não respondeu. De novo, silencioso. Ela partiu. Agora, para sempre.

Decidira isentar-se de dores e interrogações. Não passaria o resto da sua vida, que poderia ser daqui a pouco, ou vinte anos mais, à espera, na espreita, sem ao menos uma explicação, uma palavra que indicasse conforto, alento. Outra chegara? Sim. Ela acreditava que sim. Chorou. Muito. Não porque outra recebia a atenção e carinho que um dia lhe pertenceram. Chorou para secar o pranto e recomeçar. Do nada. Do zero, como fizera da outra vez. Mais ainda marcada, dolorida, entretanto, disposta a doar o que de melhor ela tinha. “Eles são assim. Em tudo se fazem iguais, fracos, sem coragem para enfrentar o desamor, o ‘desdesejo’ ". Homens.

Fizera-se santo. Ela o amara, por tal. Acreditara. “Desta vez, seria diferente. Ele era diferente”. Nascida para o amor, acreditava em milagres, bondades, transformações, sinceridades, diálogos, enfim, acreditava na humanidade.

Ensinara-lhe algo. Pouco, ainda. Quando ela se abria ao aprendizado, veio a facada e desta vez, não era de luz. Ressurgira das cinzas, quando da sua chegada. "Meus Deus, suas crenças foram todas vãs? Era tão abruptamente franca, verdadeira, leal. Não era justo receber o contrário".

Mas o amor não é justo. Nunca. O amor, ao contrário do que dizem, é traiçoeiro. Chega e se instala. Quando percebe que bem armou a sua teia, inventa uma desculpa e sai à francesa, para tecer a rede em outras paragens. Para isso, usa artifícios, dos mais cruéis. Não importa. Precisa viajar e o ônus da passagem, fica com quem também ficou, parado, inerte, esperando o sinal que não chega, a palavra que não é dita, o olhar que já não enxerga. Vai-se, como se nunca houvesse se acomodado por ali. Recebe a terra, planta, colhe, utiliza à exaustão o solo fértil. Ao primeiro aceno da terra vizinha, troca de terreno, muda-se, também de armas e bagagens.

Cansada, decidira experimentar mais uma vez. Fracassou. Fracassaram. Ambos. Ele não se explicava e ela não entendia. Já não era com ela que comemorava as datas, que passava o dia dedicado aos amantes, aos enamorados. Já não era com ela que se deitava ao luar, para contar estrelas. Não mais emitiam gemidos, ruídos e acenos que só os dois compreendiam. Não se dirigiam mais um ao outro com vocabulário singular, tão rico e tão estranho aos demais. Não se tratavam por apelidos, não moviam seus corpos na mesma direção apenas com gestos leves e peculiares. Não se cruzavam pelas ruas, não usavam roupas e cores que o outro gostava em sinal de atenção. Não debatiam os assuntos do momento, nem mesmo os assuntos do passado. Não ouviam mais as músicas de gosto comum, não sentiam juntos o cheiro de chuva, não se emocionavam com a beleza do céu, não dividiam segredos sobre os livros ou dores da alma, não mais faziam passeios ao entardecer, não mais se excediam na conta telefônica, pela simples alegria de ouvir um relato, uma anedota, uma lição de vida ou um carinho, em horários quase marcados. Não se preocupavam mais com gentilezas, gestos delicados, ternura.

Mudara o pente, certamente. O sabonete, o perfume, os modos gentis, os olhares limpos, as palavras doces. A decoração infantil, a cor das paredes, o gramado, a cor do lençol ou as flores. Mudara até o jeito de se expressar, extraordinário, excepcional. Os nomes não eram sonoros, nem sonhadores. Os contornos das letras já não eram os mesmos, invulgares. Resvalavam para o cotidiano, ácido, calculado. Decerto, o novo amor não exigira tanto. Formara-se nas nuvens negras, na fragilidade, na percepção do óbvio. Armadilha durante o sofrimento. Ele aceitara. Era mais fácil se abrir ao novo, do que trabalhar as imperfeições do antigo. O oposto dela, que firmara-se naquele porto, disposta a tratar as deficiências, aprimorar, reformar, conhecer e chegar à perfeição, ou quase.

Se mudara tanto, já não era seu. Se calara a essência, era pra que ela não o admirasse mais. Se fora rude sem sentir remorso, era para afastá-la em definitivo. Se não houvera resposta, era pra que ela já não fizesse perguntas. Se não a perdoara por amá-lo demais, era porque já não existia amor.

Partia. Partida. Rumo a estrada que a conduziria a um novo encanto. Relutou. Enfim, aceitou seu destino. Aprendera. Não se deixaria levar por enganos, mesmices, infantilidades. A vida era uma festa. Ela, uma mulher. É sábado. Vamos à festa!

*Clara dos Anjos é cronista/contista/poeta, nasceu em Montes Claros, interior do estado de Minas Gerais e reside na capital Belo Horizonte. É colaboradora em suplementos literários e comunicadora. Recebeu o nome de um personagem do escritor Lima Barreto, de quem seu pai era leitor e admirador. Prepara a publicação de seu primeiro livro "Ecos", compilação de crônicas, contos e poemas.

3 comentários:

  1. Quanta exuberância, quanta vontade de viver, quantas decisões acertadas! Com um punhado de coragem e clara opção pela saúde, vc faz uma literatura sensual que é quase uma bandeira pela liberdade. Parabéns!

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  2. A vida é um renovar constante. Tantos amores começam, enquanto outros tantos se acabam. É preciso que os pares se dissolvam, se renovem, pois a mesmice engole os amantes e os transforma em pessoas que por acaso estão juntas. Já soube de quem disse: " Não vou aceitar o morno como normal". E partiu para um novo amor.

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  3. Mara e Daniel, sempre atenciosos. Obrigada pelos comentários.Daniel, nem sempre as decisões estão de acordo com as vontades do coração. Corajosa? Nem tanto! Vontade de viver sim, mas atrelada a vontade de perpetuar o que insistia em não ver; a dura partida de quem já não estava. Mara, o morno é ruim, mas a distância desse "morno" é sofrida.
    Abs para vcs,
    Clara

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