terça-feira, 23 de junho de 2009




O mistério

* Por Risomar Fasanaro

Há mais mistério nas relações humanas do que “sonha a nossa vã filosofia”, como diria Shakespeare. Pensei nisso quando recentemente estive no velório de um conhecido e presenciei a mais estranha historia de casais que já vi e ouvi contar.

Os dois formavam um casal perfeito. Não tinham filhos e viviam em uma casa amarela sem jardim. Só saiam juntos: para o cinema, para o teatro, e até às compras no pequeno mercado. A casa recebia visitas só dos parentes. O resto do tempo ficava fechada.

Foi com tristeza que a notícia da morte dele chegou aos moradores do pequeno bairro.

Principalmente as mulheres lamentavam a morte de um marido tão bom. Marido que, é bom que se diga, despertava a maior inveja nas outras.

Lugarejo afastado, o velório foi na própria casa. A viúva permaneceu sentada em uma cadeira de encosto alto, e dela não se viu escorrer uma lágrima sequer.

Para as vizinhas aquilo significava o cúmulo da dor. Aos cochichos comentavam: a tristeza dela é tamanha que nem consegue chorar... Outra dizia: “também sou assim, quando sofro demais não choro...” E assim os comentários se sucediam.

A noite passou. Uma vizinha tomou a frente de tudo e serviu café e bolinhos às mulheres, e bebida aos homens.

Sempre séria, sempre calada, a viúva não se levantou da cadeira. Em nenhum momento se aproximou do caixão, e dela nenhuma palavra se ouviu durante todo o velório. E todos respeitaram aquele silêncio. Afinal, perder um marido como aquele deveria ser a maior dor do mundo.

E chegou a hora de o enterro seguir para o cemitério. Chamaram-na para se despedir, e ela se aproximou do caixão. Olhou bem de perto o rosto do morto e disse:
-Vai, desgraçado! Vai para as profundezas do inferno. Que o diabo te submeta às torturas que me submeteste! Que o fogo te queime as carnes com a mesma fúria que tiveste comigo! E que nele permaneças para sempre! Ardas para sempre!

Disse isso e saiu em direção ao quarto.

O silêncio que se fez na pequena sala nos possibilitaria ouvir a queda de um alfinete. A expressão de horror dos presentes era tamanha que por minha cabeça passou a imagem de “O Grito” de Edvard Munch.

E, assim como eu, imagino que todos se perguntavam como aquele casal vivera todos aqueles anos uma peça de teatro digna do que há de melhor em Nelson Rodrigues. Eu me perguntava como naquele pequeno corpo de mulher coubera, durante todos aqueles anos, tanta mágoa, tanto rancor. E constatei mais uma vez que coração dos outros é terra que ninguém anda.

Os homens fecharam o caixão e saíram da casa em direção ao cemitério, carregando ainda o eco das maldições daquele ser magro, quase esquelético, de olhos secos e baços, e que só agora os vizinhos percebiam o que nunca tinham reparado : ela era a própria encarnação da infelicidade.

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.

6 comentários:

  1. Pra lá de forte. De tão intenso foi magnético. Conheço caso semelhante, mas perde para este devido a ausência do fator surpresa. Guardarei a frase: " coração dos outros é terra que ninguém anda." Aplaudo você, Risomar.

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  2. Obrigada, Mara. Esta é uma historia que mexe muito comigo porque é veridica.
    Beijos

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  3. Essa pode ser a história de inúmeros casais. Muita gente vive de teatro, faz que sabe, faz que quer, faz que gosta, faz que tem, faz que pode ... e não passa de um fantasma aflito na sua falta de norte. Pobres diabos! E mais assustadores se tornaram neste seu relato tenso, Risomar. Parabéns!

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  4. Obrigada, Daniel! como diz o povo: entre quatro paredes ninguém sabe o que se passa, não é?
    Beijos

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  5. Riso,
    excelente !
    História real, surpreendente e triste.
    Os invejosos jamais imaginam
    que por trás de uma pessoa que
    desperta " cobiça", existe alguém remoendo mágoas e ressentimentos.
    De aparência também se vive.
    Somos tão tolos ainda, né ?

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  6. É verdade, Celamar.Quanta gente que nos parece ter tudo é mais pobre do que o mais pobre mendigo que anda nas ruas...
    Obrigada pelo carinho!
    Beijos

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