quarta-feira, 24 de junho de 2009




Conspiração no Guadalupe

(Romance)

* Por Marco Albertim

Capítulo III - Ogunhê...

A Sé não é um proscênio, é uma esplanada de cantarias; há capoeiristas, umbandas e traficâncias. Uma tapioca pode esconder dez gramas de cocaína, sob uma pedra benta pode haver um tufo de liamba; a voz do babalorixá, rascante, carrega-se de quizilas; o capoeirista é caviloso, fingido nos agrados. Tudo sob rendados de linho, de cedro talhado. Maújo não estava sob efeito de nenhuma resina, não acreditava em previsões de candomblé, em exorcismo de água benta. O coração batia como em águas tremidas. Incorporou-se ao cenário, como o vendeiro de bruxos que vende meia dúzia de bonecos e a própria alma. Rumbeiro singular no mês de março, podia banhar-se em águas de rosas ou carregar água na peneira. Gertrude fora sacrificada sem direito a despojo. Chica, agora dormindo, o corpo fornido, livre para devassas, surgira da poesia sonora do saxofone, convertida em ninfa. Era tão real quanto irreal.

O remanso no pátio da Sé cobrira-se de sombra. A igreja abriu o portal. A romaria de devotos entrou para a missa; véus, linhos, fitas, crucifixos, breviários e a palidez contrita de homens e mulheres, velhos. Uma mulher deu a Maújo um santinho com o canto de homenagem.

Do outro lado, oculto sob muros de pedras, o pai-de-santo anunciou raivoso a vinda do orixá. Mulheres negras em rodopio, com abundância de roupas nos corpos suados. As paredes do terreiro, grossas, continham o ruído dos atabaques. Maújo escapou das beatas para se entreter com a percussão dos tamborins, cruzou os braços. Uma negra puxou-o, descruzando-os. “Para dar passagem aos santos.” Cerimônia para Ogum. Cravos e rosas brancas no chão, nas orelhas. Sobre a estátua do santo, a fluorescente luzindo na espada, no saiote azul-marinho.

Da igreja vinham, longínquos, os repiques dos sinos. Logo as outras, na Cidade Baixa, responderam com repiques agudos, graves. As beatas da Sé balbuciando o canto de que Maújo fizera pouco.

No terreiro, os tambores vibravam com violência. Filhas de Oxum, Oiá, Naná e filhos de Ogum, descalços, todos de azul-marinho empapado. A aparição se deu às oito da noite. As luzes estavam acesas. Do lado de fora, a noite abocanhara a Sé. Uma mulher de altura mediana saíra do círculo mediúnico das outras, para o centro; cabelos incultos, longos, sacudindo-se com ferocidade. Impossível ver-lhe o rosto. Um véu azul fino cobria-lhe a cabeça; segurava-o com as duas mãos em cada um dos lados; o pano voando com a rotação do corpo, a cabeça para baixo. A tiara da mesma cor, na cabeça, vago traço nos cabelos revoltos. As outras fizeram a volta em torno dela. Quando reclinava o corpo para cair, endireitavam-na nos quadris, no busto, nos ombr os, sob os braços. Os bombos pararam ao mesmo tempo. Ela se deixou cair ajudada pelas outras; joelhos dobrados, logo uma perna esticou-se; cintura vergada, braços para a frente, cabelos no mesmo sentido. Levantaram-na. Uma negra estirou seus cabelos para trás, para remover o suor do rosto. Era Chica; rosto molhado e incendido, riscado por fios de mechas colados ao relevo das sardas.

Maújo vira Chica desnuda banhada de suor, os cabelos cobrindo toda a cabeceira da cama; mas com miçangas, colares, braceletes ruidosos sobre uma profusão de pregas e bordados em blusa e vestido de muitos panos!?... Um coquetel de cogumelos não descortinaria aparição assim. Correu na direção dela; quando se aproximou da porta em arco, ao lado do altar, por onde fora levada, um negro capoeirista irrompeu entre a cortina de conchas, barrando-o no caminho. Recuou, desceu a ladeira esbulhado, sob a comoção de ter visto Chica tigresa, grácil.

A hospedeira deu-lhe a chave do aposento. Tomou um banho, ele, e deitou-se. Uma hora depois Chica apareceu em outros trajos, blusa cetinosa com gravuras de iorubas; sem braceletes ou colares.
- Estou morrendo de fome! Comemos uma moqueca?

Postas de carapeba, batatas, cenouras, vagens, castanhas, ovo cozido; feijão-de-corda, arroz branco com ramos de salsinha picados; pimenta malagueta e vinho de pasto. O garçom do Maconhão perguntou se queriam fichas.
- Não.

A sensualidade de Chica, encerrada, remexia-se nos olhos negros sobre a carapeba.
- Hoje não peço mais música. Estou convencido de que, quando atravessar a rua, vou encontrar um despacho com tulipas, velas votivas e uma oração sonora. Mais alguma surpresa, Chica?
- Não faço surpresa. Cumpro a rotina.
- Você não existe, mas é um orixá terrivelmente real.
- Não sou orixá, sou matéria como você – segura-o no braço. – Respeito os orixás, sirvo para a encantaria.

Terrível para Maújo era o sentimento antropofágico de trocar Marx por um orixá poderoso, da linhagem dos exus; recusar a narrativa sem lesões d’O Capital pela peroração estropiada de um babalorixá possesso. Seus livros, arrumados por assunto na prateleira acima da escrivaninha, se equilibravam em duas inocentes estatuetas de Buda, de costas para o aposento; conforme Gertrude, que as comprara, para chegar ao nirvana sem autocríticas extenuantes. Embuste de Gertrude, ela mesma crítica severa de seu autorretrato. Agora, não imaginava, um exu de cornos pretos, túnica vermelha, pés de cabra, ameaçador entre as estátuas de porcelana. Exus gostam de louvaminhas, logo um pires com bocados de enxofre seria posto em suas patas, junto a uma vela acesa para alumiar sua carantonha.

Chica foi morar com Maújo findo o mês, depois da petite réunion. Não levou exus, enxofre, nem implicou com Buda; mudou-se com uma otomana vermelha, de camurça, uma arca de madeira e chapas de bronze, com suas roupas, um frasco de cristal com patchuli; e um exemplar do Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles. Quis ir à reunião com Maújo. Ele a dissuadiu com a promessa de que iria à dança marcial de Ogum, com colar de contas de vidro azul-marinho no pescoço e barrete da mesma cor na cabeça.

(Continua na próxima semana)

* Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.


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