quinta-feira, 25 de junho de 2009




Cine Luxor

* Por Marcelo Sguassábia

Vinte e quatro quadros por segundo. A ilusão do movimento no seu olhar desiludido, em jogos de luz e sombra. Veio porque é domingo, depois da igreja e do almoço só pode haver o cinema. As manhãs preguiçosas do domingo, as tardes estéreis do domingo, as noites insuportáveis do domingo trazendo o nojo inevitável da segunda.
Ceda. Deixe estar, não há o que possa ser feito. Nada como uma inocente matinê quando o oco da existência se apresenta e toma assento. É, está sentado ao seu lado com aquela cara impassível e pagou meia, o espertinho.
Lá fora o mundo é lesma, um esparramar demoroso. Só o que prossegue é a sessão nesses rincões esquecidos. Uns poucos bem-te-vis pousados nos beirais do palácio branco em frente ao jardim. Num dos quartos alguém decerto faz a sesta reparadora. Passe pelo corredor, pare na sala. Os retratos a óleo simetricamente dispostos, os móveis espanados. Os ricos fartos do seu manjar, seus rostos sentindo agora a felpa dos veludos. Estão em paz com seus corpos e saciados em seus haveres.
Pegada à mansão, a escola. Muda e descorada, descansa solenemente da algazarra dos meninos. Em preto e branco e câmera lenta, um cachorro erguendo a pata e urinando no pneu. Todos na Vila Alva cheios como pneus – do dia que não acaba, das horas que não passam, da notícia que não chega. A rotina sem novidades de qualquer ordem, substancial e definitiva como um paralelepípedo. É o momento em que o olho pede lupa, a alma pede ânimo e cada coisa estática mostra a crueza que tem.
Espere um pouco. Volte ao filme. Rebobine, projecionista. Dez minutos de devaneio e lá se foi o enredo da história. Se alguém perguntar qual filme viu, não saberá responder. Abra uma bala. Chore, chorar faz bem. Nem vão reparar, tão pouca gente aí dentro. Estúdios de animação do mundo todo, uni-vos para animá-lo. Depressa, antes que lhe arrastem mil elencos de fantasmas e vilões. Lanterninha, acuda lançando luz sobre seus olhos marejados.
A perna dorme, o corpo cansa no estreito da cadeira. Cruze os braços, tente entender os diálogos sem olhar as legendas. Durma. Faça como a perna: durma. Tanta gente paga ingresso de cinema para dormir. Jogue-se num triplo mortal ao centro da tela. Deixe-se ser o mocinho desse roteiro caótico. Corta. Câmera abre o enquadramento e faz uma lenta panorâmica por toda extensão do que você foi até agora. Basta de fazer o cartaz do filme alheio. Veja a platéia vendo você dentro da fita, brilhe, acene, dê autógrafos, sinta aos seus pés o tapete vermelho da entrada do Oscar. Perpetue-se no celulóide. Coragem, vá. Queime de uma vez os negativos desses dias: bem-vindo à avant-première de si próprio, em doube surround e pleno de efeitos especiais. A comédia de levezas indizíveis, com o sapateado frenético dos musicais da Metro. Até a bilheteira rói as unhas, torcendo pelo seu final feliz. Se não pela sua vontade, ao menos pela bilheteira seja feliz para sempre. The End.

* Redator publicitário há mais de 20 anos, cronista de várias revistas eletrônicas, entre as quais a “Paradoxo”

3 comentários:

  1. Amigo e mestre Marcelo, vi vc inteiro projetado na tela desta crônica em que talento, sensibilidade e criatividade se conjugam de forma única. Tudo aqui escrito parece mesmo insuperável. Ah, e essa habilidade poética de se imiscuir no cotidiano mais comezinho! Vc imerge no charco e retorna com valiosas pepitas. Há tempos, não leio algo assim tão tocante, tão humano e tão sábio. Um texto maiúsculo, e com letras graúdas aplaudo: PARABÉNS!!!

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  2. Um espetáculo de luxo, Marcelo!Vida em palavras, cortes e movimentos. Parabéns e bjs,meu amigo.

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  3. O matinê de domingo, a bilheteira, os 24 quadros por segundo, tudo tão melancólico que faz brotar lágrimas de saudade. Naquele tempo as coisas demoravam para acontecer, e a palavra "demoroso" veio a calhar.

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