sábado, 20 de junho de 2009


Animal ferido

* Por José Antonio Gonçalves

No recorte da luz noturna da cidadevejo-te, debruçada sobre o brilho da calçada.
Pecadora, de alma pesada, parecias, todavia,um anjo,
com os contornos de um corpo
predestinado aos apetites dos deuses,
sempre com muito medo que se faça dia.

Não conseguia evitar olhar-te sob os néons;
e escutava a tua lenga-lenga contínua e igual,
olhando, repetida e nebulosamente, para o relógio,
para os faróis dos automóveis e para os cigarros acesos,
pressentindo a manhã cada vez mais perto.

De repente, lembrei-me de como sempre imaginei
o futuro como as areias frescas, com alguns oásis,
pastores e cavaleiros em longa procissão informal,
crendo na felicidade absoluta e rosada de todos
os habitantes fantásticos de qualquer deserto.

Mas, ali, eras a odalisca. E eu, teu prisioneiro rendido,
regressava depois a casa, vivo, quase morto,
sobrevivente, amante, sonâmbulo, animal ferido.
E depois via-te, Afrodite ou Vênus, uma simples
mulher, com filhos e sonhos, uma casa de cal escura,
despida de luxos, uns jornais cobrindo maples
e mobílias gastas pelo movimento de rápidas visitas,
e a consciência acusava-me por ter de deixar o horto
em que vivo, impelido pela voz que me manda ir,
Verão ou Inverno, sem falha, cada noite à tua procura.

* Poeta

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