segunda-feira, 18 de maio de 2009




Poço encantado

* Por Vera Lúcia Godoy

Meu primo Euclides morreu, numa quarta-feira de inverno. Mergulhou nas águas geladas do poço fundo de sua própria casa deixando atrás de si o desespero da mãe inconsolada, que depois de muito procurar, percebeu a tampa aberta e suas marcas ao redor do poço.

Trinta e seis anos. Idade mental, sete. Único filho, epilético desde os cinco anos. Passou sua vida entre tombos, remédios e médicos.

Quando quieto em seu canto, conversava com seus fantasmas, talvez em algum momento de lucidez:
- E se mamãe e papai morrerem? Quem vai cuidar de mim? Com quem eu vou ficar?

Minha tia abraçava-o carinhosamente e tentava tirar essas idéias de sua cabeça, mas, de vez em quando, lá estava ele novamente com a mesma preocupação.

Não chegou a formar-se na escola primaria, começou a freqüentá-la, mas devido aos ataques contínuos, não pôde continuar. Depois, ficou constatado seu retardo mental. Naquele tempo, não havia escolas para alunos especiais Foi crescendo como uma tenra plantinha sob os cuidados de sua mãe.

Era muito querido. Quando estava bom, andava pelo bairro conversando com todos, cumprimentando amigos e contando histórias.

Um dia brincando com a prima, prendeu a mãozinha dela na porta. Levou tamanho susto que se pôs a chorar sentindo a dor tão grande como da própria vítima.

Havia um pé de manacá no jardim de sua casa. O aroma ardia nas tardes quentes de primavera, contagiando o ar e penetrando dentro de casa.

Tide chamava a atenção da mãe para sentir o perfume. Respirava fundo se deliciando com a fragrância doce da planta.

Parava para ver o pôr-do-sol, embriagado pela beleza contida no horizonte e quando surgia a lua, apontava mostrando-a para aqueles que o cercavam enamorado da rainha da noite.

Assim era meu primo Euclides, um eterno menino, dócil, cheio de fantasias que ia crescendo fazendo-se amar por todos. Nunca se preocupou com assuntos mais sérios como a alta do custo de vida ou a caída da cotação do dólar, jamais se irritaria com a perda do Corinthians ou lamentaria a morte do Senna.

Meu primo poderia ter crescido normalmente, ter amado muitas mulheres, sonhado, ter sido feliz ao lado de uma esposa, filhos. Poderia ter sofrido a aflição de estar desempregado ou ter desfrutado os prazeres de uma vida bem estruturada. Ter sido um homem bem-sucedido, envolvido com negócios importantes, viagens e dinheiro.

Mas não, ele jamais passou de uma criança. Viveu no mundo encantado de Peter-Pan. O tempo passou e ele não. Não saiu da fantasia de menino que brincava com carrinhos, juntava tampinhas, bolinhas de gude, figurinhas e viajava misturando sonhos sem pensar em realidade.

A vida para ele foi uma metamorfose que se mesclava no dolorido do tombo na hora do ataque, na aflição da mãe com seus pequenos olhinhos azuis, esperando que retornasse da agonia da doença, e seu sonho puro de eterna criança que não pensava nas maldades do mundo e vivia seu momento eterno do tempo que não passava, só repassava na ternura de seus pais.

Assim a vida foi seguindo em passos largos enquanto ele nunca a sentiu de verdade, permanecendo criança no seu mundo.

Morreu sem saber tantas coisas, sem ter sentido emoções mais fortes, sem ter acreditado em milagres. Morreu com a certeza de que a vida era só aquilo: uma brincadeira.

Naquela tarde de agosto, em que as pessoas, recolhidas em seus lares, fritavam bolinhos para tomar café com leite, ele resolveu que tudo acabaria ali. Com um simples salto misturaria sua vida, o medo que tinha de seus pais morrerem antes dele, a angústia dos momentos de lucidez, às águas frias daquele poço que poderia ser encantado e quem sabe, levá-lo a um mundo melhor sem quedas, sem dores sem sofrimentos. Onde o perfume do manacá pudesse ser sentido sempre, a lua nova resplandeceria na escuridão daquele buraco fundo e suas águas geladas se transformariam num lago azul de uma praia de sonhos onde não haveria medo nem desespero de estar sempre caindo em espaços profundos.

Quem sabe...
A Alice o tenha levado,
Ao país das maravilhas
Onde um gato atrapalhado,
Recitava-lhe poesias.

* Escritora

4 comentários:

  1. Bem-vinda a este espaço, Vera! E com que lindo e emocionado texto você estreia. Parabéns!

    ResponderExcluir
  2. Tudo muito bom. Texto de primeira, história emocionante sem cair na pieguice nem no dramalhão, emoção madura, memória reverente ... e nada mais se pode pedir. Vc está pronta! Parabéns!

    ResponderExcluir
  3. Vera, emocionante história, excelente estreia!

    ResponderExcluir
  4. Obrigado amigos!
    Palavras de incentivo me ajudam a continuar.
    Um grande abraço.

    ResponderExcluir