domingo, 24 de maio de 2009




O Dia da Criação

* Por Vinícius de Moraes

I

Hoje é sábado, amanhã é domingo.
A vida vem em ondas, como o mar.
Os bondes andam em cima dos trilhos
e Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na cruz para nos salvar.

Hoje é sábado, amanhã é domingo.
Não há nada como o tempo para passar.
Foi muita bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo,
mas por via das dúvidas livrai-nos meu Deus de todo mal.

Hoje é sábado, amanhã é domingo.
Amanhã não gosta de ver ninguém bem.
Hoje é que é o dia do presente,
o dia é sábado.

Impossível fugir a essa dura realidade.
Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios,
todos os namorados estão de mãos entrelaçadas,
todos os maridos estão funcionando regularmente,
todas mulheres estão atentas,
porque hoje é sábado.

II

Neste momento há um casamento,
porque hoje é sábado.
Há um divórcio e um violamento,
porque hoje é sábado.
Há um homem rico que se mata,
porque hoje é sábado.
Há um incesto e uma regata,
porque hoje é sábado.
Há um espetáculo da gala,
porque hoje é sábado.
Há uma mulher que apanha e cala,
porque hoje é sábado.
Há um renovar-se de esperanças,
porque hoje é sábado.
Há uma profunda discordância,
porque hoje é sábado.
Há um sedutor que tomba morto,
porque hoje é sábado.
Há um grande espírito de porco,
porque hoje é sábado.
Há uma mulher que vira homem,
porque hoje é sábado.
Há criancinhas que não comem,
porque hoje é sábado.
Há um piquenique de políticos,
porque hoje é sábado.
Há um grande acréscimo de sífilis,
porque hoje é sábado.
Há um ariano e uma mulata,
porque hoje é sábado.
Há uma tensão inusitada,
porque hoje é sábado.
Há adolescências seminuas,
porque hoje é sábado.
Há um vampiro pelas ruas,
porque hoje é sábado.
Há um grande aumento no consumo,
porque hoje é sábado.
Há um noivo louco de ciúmes,
porque hoje é sábado.
Há um garden-party na cadeia,
porque hoje é sábado.
Há uma impassível lua cheia,
porque hoje é sábado.
Há damas de todas as classes,
porque hoje é sábado,
umas difíceis, outras fáceis,
porque hoje é sábado.
Há um beber e um dar sem conta,
porque hoje é sábado.
Há uma infeliz que vai de tonta,
porque hoje é sábado.
Há um padre passeando à paisana,
porque hoje é sábado.
Há um frenesi de dar banana,
porque hoje é sábado.
Há a sensação angustiante,
porque hoje é sábado,
de uma mulher dentro de um homem,
porque hoje é sábado.
Há a comemoração fantástica,
porque hoje é sábado,
da primeira cirurgia plástica,
porque hoje é sábado.
E dando os trâmites por findos,
porque hoje é sábado,
há a perspectiva do domingo,
porque hoje é sábado.

III

Por todas essas razões deverias ter sido riscado do Livro das Origens, ó Sexto Dias da Criação.
De fato, depois da Ouverture do Fiat e da divisão de luzes e trevas
e depois, da separação das águas, e depois, da fecundação da terra
e depois, das gênese dos peixes e das aves e dos animais da terra,
melhor fora que o Senhor das Esferas tivesse descansado.
Na verdade, o homem não era necessário.
Nem tu, mulher, ser vegetal, dona do abismo, que queres como as plantas, imovelmente e nunca saciada,
tu que carregas no meio de ti o vórtice supremo da paixão.
Mal procedeu o Senhor em não descansar durante os dois últimos dias.
Trinta séculos lutou a humanidade pela semana inglesa.
Descansasse o Senhor e simplesmente não existiríamos.
Seríamos talvez pólos infinitamente pequenos de partículas cósmicas em queda invisível na terra.
Não viveríamos da degola dos animais e da asfixia dos peixes.
Não seríamos paridos em dor nem suaríamos o pão nosso de cada dia.
Não sofreríamos males de amor nem desejaríamos a mulher do próximo.
Não teríamos escola, serviço militar, casamento civil, imposto sobre a renda e missa de sétimo dia.
Seria a indizível beleza e harmonia do plano verde das terras e das águas em núpcias,
a paz e o poder maior das plantas e dos astros em colóquio,
a pureza maior do instinto dos peixes, das aves e dos animais em cópula.
Ao revés, precisamos ser lógicos, freqüentemente dogmáticos.
Precisamos encarar o problema das colocações morais e estéticas,
ser sociais, cultivar hábitos, rir sem vontade e até praticar amor sem vontade,
tudo isso porque o Senhor cismou em não descansar no Sexto Dia e sim no Sétimo.
E para não ficar com as vastas mãos abanando,
resolveu fazer o homem à sua imagem e semelhança,
possivelmente, isto é, muito provavelmente
porque era sábado.

("Antologia Poética”, Companhia das Letras, 1992).

Um comentário:

  1. Agradeço o resgate do belo prosa/poema de Vinícius de Morais. Passagens pra lá de sábias.

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