terça-feira, 26 de maio de 2009




Juntando pedaços.

* Por Evelyne Furtado

Aline não saberia dizer quantos anos tinha o vaso que jazia em vidros coloridos no chão. Ela brigara com o decorador para mantê-lo em destaque na nova sala. Pouco importava que o seu vaso destoasse das peças modernas nas quais havia investido um bom dinheiro.
Não se joga fora lembranças por não combinarem com o novo estilo de vida. Repaginação tem limites, argumentara. Aline, que jamais tratava mal as pessoas, agora esbravejava com o homem assustado que não entendia a intensidade daquela atitude.
No ímpeto ela correra quando vira uma mão aproximando-se do seu vaso e na confusão o derrubara. Heitor, convidado de um amigo comum, apenas encontrara um bom lugar para guardar as chaves do seu carro e aquela louca havia se jogado contra ele esbarrando no objeto de gosto duvidoso que se desfez no chão.
Todos na sala olhavam espantados aquela a cena. A anfitriã sofisticada transformara-se em uma desvairada. O homem a quem ela se dirigia achava-se visivelmente ofendido.Aline perdera o controle e a festa de inauguração do seu novo apartamento terminou ali.Um grupo de convidados ainda levou qualquer coisa do farto bufê para continuar discutindo o surto de Aline em outro lugar.
Heitor foi o primeiro a sair. Ao chegar ao carro, no entanto, verificou que não estava com as chaves e tremeu ao pensar que teria que enfrentar a fera que o acuara.Sem outra opção, àquela hora da madrugada, voltou ao apartamento de espírito armado contra qualquer ataque que provavelmente viria da dona da casa.
Encontrou a porta aberta e entrou. Todas as luzes estavam acesas e a música continuava tocando. Ainda havia comidas e bebidas espalhadas pela sala, mas nem um sinal de vida por ali. Encaminhou-se para o local do incidente. Localizou as chaves perto do sofá e ao retornar sem querer chamar atenção, deparou-se com Aline sentada no tapete olhando os restos do vaso.
Não era mais a mulher segura, tampouco a tresloucada que ele viu sentada no chão. Mais parecia uma menina chorando sua boneca quebrada.
- Desculpe-me. Esse vaso representava muito para mim – disse Aline em voz fraca.
Contou-lhe que a peça tinha sido de sua bisavó e que desde então vinha passando a ornamentar a casa de todas as mulheres da família. Heitor, surpreendido diante do novo quadro, compreendeu a relevância do objeto. Pensou que talvez fosse a única referência confortadora no mundo competitivo no qual Aline vivia e tentou confortá-la.
-Quando estiver pronta poderei lhe ajudar a juntar os pedaços.
No começo da madrugada um homem e uma mulher, até pouco tempo desconhecidos, recolheram com peculiar intimidade os restos do vaso que testemunhara gerações.

* Cronista e poetisa em Natal/RN

7 comentários:

  1. Maravilhosa crônica romântica em que o mistério do comportamento feminino, com valores que a maioria dos homens sequer supõe, toma toda a cena; de início, de forma até divertida (imagino os olhos assustados dele) e, depois, amorosamente, ou quase isso. Cara Eve, vc é suave na abordagem do universo da mulher e isso encanta. Parabéns.

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  2. Juntando os cacos do vaso, a personagem juntava cacos de tempos idos e talvez nem sequer vividos por ela. Mas disso é feita a vida, de vasos que se quebram de repente e de tentativas vãs de reconstitui-los. Linda alegoria, Evelyne.

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  3. Evelyne: nós mulheres valorizamos coisas que para os homens não têm o mesmo significado. Tenho constatado isso em minha própria vida. Maldade masculina? Jamais. Apenas um modo diferente de ver. Imagino o quanto o rapaz ficou triste e, ao mesmo tempo surpreso com a reação da personagem.Na verdade não era apenas um vaso que se quebrava, não é? Ele é apenas uma metáfora. Lindo texto!
    Beijos

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  4. O casal juntará o que quebrou-se irremediavelmente? No afã de subir na vida aos olhos dos demais, Aline foi atropelada pela falta de traquejo social. O vaso é mera referência à sua origem, mas a verdade está além dele. O novo mundo é novo demais para a inadequação dela. Difícil entender o motivo que leva alguém a querer ser o que não é, e tentar comportamentos que não são seus. Mas quem sou eu para julgá-la? Que viva a própria vida e não a dos outros.

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  5. Daniel, Marcelo,Lírio do Prado e Mara,agradeço demais as leituras e os comentários. Aline é uma mulher como muitas que conheço, em um momento de fragilidade. Ela não deixou de ser quem é Mara, daí o desespero com o vaso quebrado. Há vários sentimentos em poucas linhas. Um alegoria, como viu, Marcelo. Legal as diferentes visões.
    Beijos a todos.

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  6. Evelyne, não acredito que você vai parar esse texto ali...! Peraí, eu sei que depois de juntar os cacos dos vasos algo aconteceu entre o "casal". Eles juntaram os seus cacos também. Eles se reconstruiram para algo novo...! Você também vai contar essa história, não vai???????? 27 beijos.

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  7. Estão juntando os pedaços, Fábio,rs. Vamos ver se sai a continuação. Beijos e obrigada.

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