sábado, 25 de abril de 2009


Vida real


Amanda Lourenço (*)


Ele sentia que alguma coisa estava faltando. Até que gostava de ver novela, mas quando acabava era um vazio só. E ele logo esquecia do amor entre César Fernando e Camila Augusta. O que fazer agora? Resolveu pegar o jornal pra dar uma olhadinha. Não é que se interessou?

E foi assim que pegou gosto pela coisa. Passou a saber de tudo que acontecia na cidade e no mundo inteiro, de fofoqueiro que era. Mas dali em diante era só alguém se meter a besta com ele que ele ia dizendo em tom de ameaça: "É melhor tomar cuidado porque eu tô bem-informado". E os outros riam, coitados, achando que o cara que já era estranho tinha endoidado de vez. Onde já se viu, como se aquilo fosse arma por acaso...

Eles não entendiam muito bem esse negócio de estar bem-informado, que o cara enchia a boca pra dizer. Ué, todo mundo sabia muito bem que a Camila Augusta ia terminar tudo com o César Fernando porque a Débora Angélica fez um plano diabólico pra separar os dois. Não era isso que era estar bem-informado?

Mas ele não ligava para o que os outros diziam e não quis parar por ali. Ele achava que saber tudo o que ele sabia e não fazer nada era o mesmo que não saber. Precisava fazer alguma coisa. Mas o quê?

Então ele decidiu que devia alertar a todos sobre o que estava acontecendo no mundo. Começou com os colegas. Falou, falou, mas quase ninguém ouviu, queriam mesmo era falar, afinal, agora que César Fernando e Camila Augusta estavam se acertando, o que poderia ser mais interessante que isso? Todos estavam ansiosos para darem suas opiniões sobre o caso. Mas apesar disso, uns poucos prestaram atenção no que ele falava.

E a partir dali aquele cara estranho passou a ser um problema. Já não era a primeira vez que reclamavam dele. Ele queria umas coisas que ninguém tinha querido antes. Primeiro foi na faculdade, onde queria porque queria mostrar que o professor estava errado. Depois teimou em organizar uma passeata a favor de uma causa complicada. E logo no dia seguinte, assim de repente mesmo, mudou de idéia sobre as passeatas, pois achou o povo acomodado demais, crentes que estavam fazendo sua parte em andar um pouquinho e ir embora pra casa.

Foi aí que bolou um plano mais diabólico do que o da Débora Angélica. Numa terça-feira, nos principais jornais do país, saiu uma propaganda esquisita, sem bonequinhos, sem cor ou sem noventa e nove no final, que de tão simples destoava das outras e por ironia era sempre a primeira a ser lida. Era assim: "Pessoas que têm mais dinheiro do que precisam acabam fazendo coisas estúpidas com ele. Dê o excesso para alguém que precise mais que você". Ficou na dúvida se escrevia excesso, porque achou a palavra muito séria, mas decidiu que já não era mais hora para brincadeiras e fez questão dela lá.

Foi um alvoroço só, aquela terça-feira. Não porque as pessoas estivessem se comprando presentes ou pagando almoços para os necessitados, mas porque todos queriam saber qual era a nova jogada de marketing. Os publicitários, coitados, passaram o dia atendendo ligações de empresas que perguntavam por que diabos aquela campanha magnífica não tinha sido feita para eles. Que grande sacada!

As pessoas, então, depois de todo aquele rebuliço inicial, passaram a pensar menos na estratégia misteriosa e mais na mensagem em si. E de pouco em pouco, cada um foi se dando conta da veracidade daquela frase, até que todos concordaram enfaticamente com ela. O autor da mensagem, escondido em seu anonimato, ficou orgulhoso de sua idéia e teve certeza de que em breve a pobreza estaria extinta no país. Era unanimidade: todos se convenceram e tomaram como discurso próprio o fato de que quem tem dinheiro demais, tem que dividir. Até esqueceram um pouco da novela, e olha que ela estava no fim, na melhor parte, com a chegada dos gêmeos.

O estranho foi que todos falavam, falavam, mas não se via movimento algum. E então o cara percebeu que o país todo parecia esperar pacientemente. Esperar o que, ora bolas? A hora é essa! Pois a hora passou e a impaciência tomou conta de todos. E então ele logo percebeu que todo mundo achava que alguém mais rico tinha que dividir o dinheiro com ele. Cada um com a sua prioridade. Um queria comprar comida, o outro um tênis, aquele lá um carro, que ficaria tão mais fácil de ir trabalhar. Já aquele outro queria uma casa de 5 quartos: um pra ele, um pro Juninho, um pra Carol, um pra TV e um pra visitas. O vizinho dele tinha, ué!

O cara ficou irritadíssimo com a situação. Que idéia, a dessa gente, não querer abrir mão de nada. É puro egoísmo deles. Ah se eles entendessem como as coisas funcionam, com certeza trocariam seu computador de última geração por um mais velhinho para dar a diferença em comida para alguém que precisa. Ora bolas! Pena que ele próprio não podia fazer isso, pois é lógico que precisava do melhor computador do mercado para continuar com seu plano e salvar o mundo. Uma pena mesmo, senão ele ia mostrar como é que tinha que fazer. Até tentou convencer seus seguidores a darem o exemplo e venderem o carro, mas eles precisavam de um transporte para poupar tempo e assim dedicarem-se mais à tarefa de se informar. Completamente compreensível. Mas eles eram exceções. Os outros podiam e não faziam por puro egoísmo.

A essa altura do campeonato, percebeu que seu plano tinha falhado, exatamente como o da Débora Angélica. Mas definitivamente, ele não parava por ali. Foi falta de experiência, pensou. Ficou em dúvida sobre o que fazer. Nessa distração, escolheu se distrair passando os canais da TV e, de repente, viu a novela nova. Tinha uma história tão interessante... Uma garota descobriu que o amor de sua vida era, na verdade, seu irmão! Decidiu esquecer um pouquinho aquela história de informação só até que a novela acabasse.

*Amanda Lourenço é estudante de jornalismo. Estagia na TVE, em jornalismo internacional.

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