quinta-feira, 30 de abril de 2009




Um para o outro

* Por Marcelo Sguassábia

Tá certo que ele não era nenhum conhecedor profundo do moderno cinema iugoslavo. Mas ela também não era nenhuma marchand francesa especializada na fase azul de Picasso ou nas esculturas de Rodin. Tá certo que ele não era nenhum master-franqueado do Instituto Kumon, com 25 unidades só no Centro-Oeste e ótimas perspectivas de expansão. Mas ela também não tinha propriamente onde cair morta, e se tinha não sabia o número da sepultura nem o cemitério.
Tá certo que ele não era nenhum prodígio musical, capaz de assobiar as 32 sonatas de Beethoven de trás para a frente e em ordem cronológica de composição. Mas ela também não arriscava nem o “Atirei o Pau no Gato” debaixo do chuveiro e sem ninguém em casa.
Tá certo que ele não era nenhum Tom Cruise, ainda que seu convênio médico cobrisse cirurgia para correção de astigmatismo congênito em grau severo. Mas ela também era um estrago natural à prova de photoshop, e estava a léguas de distância da última colocada no Miss Birigui 1978, edição do evento especialmente pródiga em mulheres corcundas e fora do peso.
Tá certo que ele não era nenhum espertalhão pronto a dar o bote, sendo notória sua semelhança fisionômica com Mister Bean – com a diferença que este último amealhou uma montanha de dinheiro com sua cara de idiota. Mas ela também não era nenhuma megera movida a terceiras intenções, e não consta na delegacia boletim de ocorrência envolvendo seu nome.
Tá certo que ele não era nenhum iogue indiano, evoluído espiritualmente a ponto de ingerir um basculante de estrume com um sorriso nos lábios, em piedoso sacrifício pelo bem da humanidade. Mas ela também não nascera Madre Teresa de Calcutá, e trocaria sem pestanejar sua alma por um naco de quebra-queixo, desde que com bastante gengibre.
Tá certo que ele não era nenhum exemplo de autoestima, se considerarmos as três ou quatro vezes em que foi encontrado com o gás ligado e a cabeça dentro do forno, além de outras tantas em que o flagraram ouvindo a Perla no volume máximo (e no banheiro, onde o perigo é maior devido ao eco). Mas ela também não tinha motivos para nutrir por si mesma a mais remota simpatia, tanto que uma não olhava para a cara da outra quando se cruzavam no espelho.
Tá certo que eles não eram nenhum casal modelo. Ainda assim apaixonaram-se, casaram-se e previsivelmente não foram nem um pouco felizes. Mas também, antes mal acompanhados do que sós.

* Redator publicitário há mais de 20 anos, cronista de várias revistas eletrônicas, entre as quais a “Paradoxo”


3 comentários:

  1. Ambos foram máximos em sua fraquezas e defeitos. Isso é o que eu chamo de casal determinado para amar. O plano de saúde que paga a cirurgia de astigmatismo congênito entrou na roda meio como Pilatos no Credo, mas ficou engraçado até na dor que um e outro sentem. Felicitações de fã.

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  2. A vida como ela é, sem photoshop, cheia de cravos e espinhas, estrias, mama caída, queixo duplo, joanetes, remelas, caspa e demais escatologias. Vida ao vivo. E crua, como quase ninguém consegue encarar ... a não ser vc, mestre Marcelo, que reverte a sensaboria do anti-clímax num desfecho impiedoso, mas, ainda assim, hilário. Uma jogada e tanto! Parabéns, sempre!

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  3. Existe casal modelo ? O que derruba é a expectativa em relação ao " outro" . Quando se tem maturidade suficiente, descobre-se que ninguém é perfeito e tenta-se " adaptar" e " conviver" com as diferenças.
    O problema é encontrar a tal da maturidade.
    Será que seus personagens encontraram ?
    Boa, Marcelo. Boa. Gostei.

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