terça-feira, 28 de abril de 2009




O trato e a reza

* Por Fábio de Lima

Pedro Paulo chegou com passos curtos na indecisão de quem acredita, mas desconfia. Suas mãos nos bolsos da calça serviam para conter o frio e também a timidez. A garoa molhava devagar as paredes da Igreja Nossa Senhora dos Pecadores. Pedro Paulo entrou com o silêncio. Disputou lugar, também, com o barulho de seu sapato pisando o chão lustroso da igreja. O homem olhou as pinturas religiosas seguindo seus movimentos com olhar de desaprovação.

O banco da igreja estava gelado quando Pedro Paulo sentou. Não havia ninguém lá às 8h35 daquela quinta-feira de inverno em Maranguape, interior do Ceará. Pedro Paulo pensou que Madalena havia pedido para ele passar no supermercado antes de voltar para casa e comprar atum para ela fazer uma torta. Pedro Paulo pensou também que já devia fazer 15 anos que ele não entrava numa igreja.

Lá fora estava frio enquanto dentro da igreja estava quente demais para Pedro Paulo continuar de blusa. Ele tirou a blusa e a deixou dobrada ao seu lado. Também tirou os óculos, mas depois os colocou de novo. O relógio apertava demais o pulso. Os sapatos apertavam demais os pés. O cinto apertava demais a barriga. Pedro Paulo estava incomodado de estar ali. Mas sabia que a igreja serviria para colocar suas ideias em ordem na cabeça. Só havia um problema: desaprendera a rezar.

Como podia esquecer o Pai Nosso, pensava consigo mesmo. E também já não se lembrava da Ave Maria. Pedro Paulo não se lembrava de nada e ali na igreja começava a entender que sua vida estava errada demais para consertar tudo com uma simples reza. Lembrou da infância perambulando pelas ruas. Lembrou da adolescência se prostituindo em troca de comida. Lembrou da juventude roubando carros e matando gente se fosse preciso. Lembrou só das coisas que gostaria de esquecer.

Madalena havia pedido atum e cebola ou só atum? Seus trocados no banco seriam suficientes para pagar a conta do mercado e da farmácia no final do mês? Pedro Paulo coçou a cabeça enquanto olhou nos olhos de Santo Agostinho. Era filosofia demais a dor que o assolava. Então, Pedro Paulo ajoelhou-se e resolveu falar com Deus. Falaria do seu jeito, mas falaria tudo. Não deixaria para depois uma só palavra.

O relógio da igreja contou mil trezentas e trinta e sete batidas. Pedro Paulo se levantou. Seus joelhos já estavam dormentes. Foi para o corredor e fez o sinal da cruz. Saiu andando direto para casa e nem passou no supermercado. Entrou pela porta da cozinha porque a porta da sala estava fechada por dentro com um trinco. Entrou sem fazer barulho. Entrou e sentou no sofá. Ali ficou por quase uma hora.

Assim como na igreja, a casa de Pedro Paulo era um silêncio só. Na igreja ainda se escutava o zoado longe de umas crianças brincando na praça central. Em casa não havia zoado nenhum. Na igreja os santos falavam com os olhos. Em casa não havia ninguém para falar nada. Pedro Paulo olhou para o retrato de Madalena sobre a estante da sala. Pedro Paulo teria trazido o atum e a cebola se a mulher tivesse pedido a ele. Mas, por essas coisas do destino e da morte, fazia 15 anos que Pedro Paulo não ouvia a voz de Madalena.

O homem se levantou do sofá e foi à estante. Segurou com as duas mãos o retrato de Madalena. Olhou fixamente no rosto imóvel. Depois abriu a gaveta e lá colocou o retrato. No fundo da gaveta havia um livro preto e empoeirado pouco maior que uma mão. Era hora de cumprir o trato que fizera com Deus. Leria a Bíblia até aprender toda a história, incluindo as rezas. Em troca, Deus o faria esquecer Madalena que teimava em não morrer, mesmo 15 anos depois de morta. E a leitura, em voz alta, rompeu o silêncio daquela casa.

* Jornalista e escritor, ou “contador de histórias”, como prefere ser chamado. Está escrevendo seu primeiro romance, DOCE DESESPERO, com publicação (ainda!) em data incerta.

4 comentários:

  1. A dor da perda é irreparável. Só o tempo, com o tempo, ameniza esse vazio com a ajuda das melhores lembranças. Crônica dolorosa e envolvente, caro Fábio. Parabéns.

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  2. Triste história a de Pedro Paulo.
    Fiquei com dó dele.
    Lendo e imaginando as cenas.
    Beijos !

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  3. Meu Deus, que texto! Estou aqui sem fôlego!...
    Parabéns, Fabio!

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  4. Beleza, Fábio! Apesar de triste é bom ler sobre o amor que resistiu purificando o passado negro de Pedro Paulo. Parabéns e beijos

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