segunda-feira, 20 de abril de 2009




Lancem as cordas e uma ponta de esperança

* Por Eduardo Murta

Vislumbrar a cadeia de montanhas a partir do cume soberano do Himalaia era sonho que povoava o coração de Maria desde os tempos em que aprendera a distinguir a noite do dia. Paixão só comparável à de virar mãe. A decoração do quarto revela esses extremos – painéis de alpinismo, geleiras em plenitude, bichos em pelúcia e sapatinhos de bebê.

A carta, assim, vai lhe soar capital provação naquele março já com as chuvas se recolhendo. Era envelope despretensioso, pardo, misturado às contas de telefone, duplicata de condomínio, notas do salão de beleza. Foi abrindo entre uma e outra pipoca, tradição das tardes de domingo à frente da tevê. Saltou do sofá logo às primeiras linhas. Era o sim a seu projeto de cruzar as montanhas geladas do Nepal.

Esperara anos por aquilo. E tudo chegara num tempo em que as curvas em sua vida rumavam para uma inflexão máxima: realizar um dos projetos implicava renúncia ao outro. Esmalte novo, roeu as unhas, uma por uma, naquela noite. Ao terceiro uísque, corpo e espírito fraquejando, o salseiro de lágrimas a recolhia a uma condição de miserabilidade quase órfã.

Não bastava prantear sobre o dilema. E o que fazer dele com relação a Pedro? Numa das primeiras conversas mais densas da relação, haviam feito pacto a que nenhum privaria o outro daquilo que fosse determinante em seus destinos. E como aquilo era. Mas ela adiou o diálogo. Ao ruído do carro à garagem, refugiou-se no banheiro.

Fez como em circunstâncias que pediam reserva. Alongou-se uma eternidade. Hidratou os cabelos, massageou a sola dos pés, depilou-se. Só saiu quando não ouvia mais nada. Deitou de mansinho, a não ser notada, e deu com os olhos do namorado em tom de interrogação. Os dela denunciavam como havia chorado. Ela sussurrou: que a abraçasse. Queria adormecer, queria um esquecer momentâneo.

Se traía. Porque adormeceu e foi por exato com o dilema que sonhou. Tudo em densa neblina, os desvãos à volta, o ar gelado tracejando-lhe a face. E o bebê, nu em pelo, mansamente arrastado pelo vento. Se distanciava. Há abismos por toda parte. E uma sensação de impotência que a petrifica. Até que neve e criança formem uma só matéria, montanha abaixo.

Acordou à beira da asfixia. Pulou da cama, antecipou o café. Dosou num amargor planejado, como que buscando choque de realidade. Mais tarde, à mesa, contou a Pedro. Se decidira pelo Himalaia. Embarcaria em oito meses, para aclimatação, e o deixaria livre a que também fizesse suas escolhas. Armou-se um silêncio mútuo, duro, soturno.

Se miraram longamente. Ele aproximando e afastando as mãos dela. Disse que não a queria mais. Mentia. Romperam. Não se falaram. Ano seguinte, Maria escreveria seu nome à História, como a primeira brasileira a alcançar o cume do Everest. Celebrou a escalada, celebrizou-se, mas havia incompletude naquilo. Trouxe todos os sentimentos difusos na bagagem. E, ao aeroporto, ninguém menos que Pedro a aguardava. Diferente. Mais magro. Em barba.

E... estremeceu... uma menininha aos braços. Ares de pai em adotiva vocação. Teria perto de seis meses. Vestidinho em rosa de sonhar. Foi encurtando as distâncias. Os olhos fazendo a curva de aproximação. Brilhavam. Um sorriso pequenino logo se desarmou. Ela estendeu as mãos a Pedro. Foram de leve moldando os corpos, os três, um ao outro. Os dilemas, feito geleiras em migração, se dissolvendo. Era tempo de descer do Himalaia.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.


2 comentários:

  1. Uau! Lindo poema de amor que provoca vertigem, e não apenas pela altura cumprida. Mas quem ama não cai, quem ama levita, da mesma forma que o leitor desta crônica, graças ao mágico poder do sentimento que vc, caro Murta, divide aqui com todos. Parabéns.

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  2. Saiba que várias amigas ligaram, pedindo o telefone do personagem Pedro. Perguntei se queriam também cordas, resgate e uma bela dose de esperança. Votaram nessa última, claro.

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