quarta-feira, 22 de abril de 2009




Joaquina

* Por Marco Albertim

Ela olhou-me com uma tenaz nos olhos; não queria me ferir, nada de por-me uma forquilha no pescoço por ter, agora, casa própria, não pagar o uso do próprio corpo à dona do cabaré. Olhou-me fundo, tentando descobrir um sinal oculto nas minhas pupilas; daí, fazer um juízo próprio, maduro. Os anos, insanos, não corrigiram sua pronúncia, dotaram-na de brio, inda que sem poder sobrepor-se a quem a julgara inferior, tão suja quanto a valeta de esgotos na rua do Rio. Ali, com os cabelos longos nas costas redondas, não sentira fome. Cobrira-se de perfumes chinfrins para atrair homens, amando uns, odiando outros. Ganhou a vida, deixou-a escorrer como a água na valeta; a valeta secou, gretou-se com aterros de uma argamassa instável. Joaquina não se gretou, afrouxou a pele sob os olhos, sob os peitos, nas omoplatas antes tesas.

Convidou-me para entrar sem parar de inquirir com os olhos. Quis rir, eu, mas senti-me tão sinistro quanto os anos que a arriaram. Manteve o olhar sem ter medo de reações. Abriu a porta do lado, um portão no oitão para não dar acesso à sala com os móveis que nunca tivera, não nos coitos contados feito moeda de aquisição suada.
- Sim!?

Deixou-me entrar porque o ofício a ensinara a nunca recusar um homem; inda que fosse um estranho. Riscos, perigo, arrostara-os com os olhos apurados, no uso do escasso diálogo.
- Não se lembra de mim? – perguntei. Que direito tinha eu de pretender algum lugar na memória mundana de Joaquina? Moveu-me a esperança de apoio no que ela tinha de nutriente em seu passado.

Sentamos no quintal, sob uma goiabeira cheirosa, disputando com Joaquina os odores da terra. Sacudiu os cabelos para trás, ainda lisos, escorridos, com mechas brancas brilhantes. A mesa sobre a qual deitamos os braços, de superfície macia, era velha, mas não tão insidiosa quanto as do cabaré, onde ela se deixara fanar.
- Não...!

Não tenho que dizer meu nome, diabos! Tantos ela ouvira, descartara-os como a água suja na bacia do asseio pós-coito.
- Não preciso dizer o meu nome para você se lembrar de mim. Será só um nome a mais. Posso lembrar de alguns fatos...
- Tenho na memória tudo que se passou comigo. Talvez você seja o primeiro homem a me fazer nascer na memória, uma razão para rir ou para ficar triste. Se for para rir, diga logo que lhe fico grata; se for para ficar triste, a tristeza tá de aviso de que comigo já não mede força.
- Está falando do mesmo modo de quando a conheci; eu a conheci sem você me conhecer. Apreciei-a de longe, senti prazer com seu riso; senti raiva quando você sentiu, fiquei triste quando a vi calada, pensando por certo em aproveitar seu corpo noutro lugar, com conforto e com as palavras que sei usar hoje.
- Deus do céu! Pequei durante toda a minha vida, e só agora um anjo desce das alturas para limpar minha alma. Deus, não moro mais na rua do Rio!...
Ri, quis vê-la rindo também. Mas meu riso, falto, não resistiu, sumiu nas próprias entranhas, rendido ao peito insubmisso de Joaquina. Custou-me crer que podia julgá-la sem ter que me esconder num poste, ou num amigo que tivera influência sobre ela; alguma, visto que ninguém conseguira lugar de confiança em suas redondas ancas.
- Tem saudade do passado?
- Não.
- Nem da sua juventude?
- Se minha juventude tivesse sido outra, talvez...
- Os homens, nenhum deles lhe deu felicidade?
- Já deitei com homens sentindo ódio por eles, querendo retalhar o rosto de cada um só para me vingar de meu corpo humilhado...
- Como suportou tudo sem uma queixa?
- Nunca chorei na frente de homem nenhum, para não me humilhar mais ainda. Chorei na frente de amigas, as que foram humilhadas como eu.
- Já amou?
- Já. Nunca me deitei com quem amei. Ele era puro, tão puro que pedi muitas vezes que ele saísse dali, fosse para longe da rua do Rio.

Trouxe uma cerveja sem que eu a pedisse, abriu-a com modos de mulher velha, hábil nos dedos, os instintos alertas. Em pé, baixou a cabeça, mirando a tampa na boca da garrafa. Não podia mostrar-se insegura, não sem correr o risco de confessar-se senil. Os cabelos se abriram sobre as laterais do rosto. Vi, não sem susto, que um dos olhos, oblíquo, inquiriu-me sobre o juízo que fiz dela. Não queria, eu, ajuizar seus atos. Fora julgada, sentenciada nas rugas sob os olhos, nos seios teimando na rigidez fanada.

Começou a chover. Não demos conta do tempo. Podia cair um temporal. Sobrevivêramos, eu e ela, ao temporal dos anos. Chamou-me para entrar, por deferência, indiferente aos pingos em suas sobrancelhas bastas. Havia um terraço nos fundos, coberto por telhas gastas, algumas rachadas, musgosas todas. Caibros, ripas cobertos pela fuligem de um fogão a lenha, a carvão; cinzas davam conta de cozedura recente. Ela passou roçando o vestido na frente do fogão; com as costas úmidas, os cabelos, absorveu o cheiro das cinzas nas suas ancas. Impregnou-se, tornou-se tão telúrica quanto o sumo da goiaba madura.

Abriu outra cerveja, lavou os copos. A cozinha, limpa, com piso de cimento grosso, tinha o mesmo cheiro do quintal. Na pia larga, o escorredor de plástico com pelo menos uma dezena de copos. Joaquina morando, vivendo só, não perdera o costume, tinha o instinto do convívio múltiplo.

A cerveja foi posta numa mesinha no meio da pequena sala, à frente de um sofá de braços e assento gordos. Sentou-se de meu lado, ela, afastada o bastante para acomodar as costas na direção oposta a minha. Vi seu rosto no retrato da parede, do jeito que a conheci; cabelos negros, estirados, rosto fechado, dando conta de desconfianças, atento a traições.

Ela mirou o retrato, tinha mesmo que mirá-lo porque pusera-o ali para ser visto, como um troféu.
- Foi assim que vi você pela primeira vez. Tinha um brilho incomum nos olhos, de orgulho e de defesa, parecia que estava espreitando o ataque de um rival.

Depois da segunda cerveja, Joaquina lembrou-se de mim; olhou para meu rosto como para se recuperar de uma ferida na memória. Contraiu as pálpebras, bebeu o resto da cerveja no copo, ficou com os olhos semicerrados. A memória mundana de Joaquina tinha um lugar para mim.
- Você não mudou quase nada e eu quase não me lembro de você...
- Traga outra cerveja que a memória fica preguiçosa, sem esforço recupera as lembranças.

Depois que bebeu outro copo, segurou na minha mão e, decidida:
- Venha, vamos para o quarto comigo...!
- Não.
- !...
- Não quero perder trinta anos de ilusão.

* Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.


2 comentários:

  1. Marco, vc escreve como quem maquia a personagem, depois pinta o cenário onde ela se move, daí resulta uma aquarela magnífica: amarga, mas sobretudo humana. Quanto talento! Parabéns!

    ResponderExcluir
  2. Li de um fôlego só essa beleza de conto. Parabéns!

    ResponderExcluir